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segunda-feira, julho 28, 2025

O homem menos estranho- conto

 

O homem menos estranho

Pega o primeiro ônibus que chega ao ponto, o vento corta seus lábios. Há dias não vê a rua, não quer.

O ônibus está abafado, mas gosta daquele cheiro de gente. Havia lugares vazios nos últimos bancos, escolhe o que tem o homem menos estranho e senta, perna encostada na perna do homem, nem viu a cara, não importa.

A perna revestida de seda dá sensação de segunda pele, desliza, sente prazer em roçar disfarçadamente no estranho. Fecha os olhos, inspira o ar misto de cheiros. Final do dia, cada cheiro uma história, de olhos fechados adivinha que o homem ao lado tem mulher e filhos à espera.

Faz isto sempre, pega um ônibus qualquer, escolhe os dias cinzentos, aqueles que, intui, não suportará ficar tão só. Estar colada ao homem a esquenta, ele não se afasta, mas pressiona mais a coxa. Coxa contra coxa.

Finge não sentir a mão que sobe pela sua perna, deixa que o homem a toque, se arrepia, não consegue se mexer. É preciso dizer não, abre os olhos. Ele se aproxima, barba áspera, hálito acre, quente. Agarra seus ombros e a beija violentamente, morde, machuca, Ela não sente prazer, nem medo, apenas vida.

domingo, julho 13, 2025

O miolo de pão- Miniconto


O miolo de pão



Observava as mãos dela. Soltava com cuidado a xícara no pires e enrolava o miolo do pão. Todos os dias o mesmo movimento. Lembro do início, eu me continha para não pedir para que parasse. Em alguns dias, mais irritado, dizia: “Por favor, pare de fazer estas bolinhas! Lembra minha mãe.”.
Ela me olhava enviesado e se continha. No dia seguinte recomeçava. Às vezes, compro pão de forma, digo que não encontrei pão fresco no caminho. Minto. Sei que não terei que assisti-la transformando migalhas em bolinhas.

Hoje não ouvi os passos no corredor. Eu acordava sempre antes, fazia o café. Na cozinha aguardava os ruídos dela: a água da torneira do banheiro, os passos lentos se aproximando.

Há silêncio hoje. Ouço minha mordida no pão, o gole do café. Ela não virá mais. Começo a enrolar o miolo do pão.

segunda-feira, junho 22, 2020

Miniconto. Mãe Amparo

Mãe Amparo

Diz Amparo, a mãe que me criou, que um homem a procurou pedindo que arranjasse alguém para me adotar. A minha mãe era louca, ele disse. Não me cuidava, me deixava na rede e trancava a porta. Ela deixava biscoito de rapadura junto de mim, disseram. Arrombaram a porta para me tirar do quarto do casebre. Eu estava suja e faminta. Tomei três pratos de sopa neste dia na casa de Amparo. E fiquei aos cuidados dela, que mais tarde me adotou.
Este homem era meu pai, aí me pergunto o porquê não cuidou de mim. Mas sei que se ele não me oferecesse a outra pessoa, não sobreviveria.
Amparo era uma mulher rígida. Me criou para que no futuro cuidasse dela, que tinha uma doença cardíaca crônica.
Eu cozinhava, limpava a casa e estudava. Tinha que estudar. Antes da escola, deixava o almoço pronto. Foi assim desde que cresci o suficiente para alcançar o fogão e a pia.
Na casa dos avós, pais de Amparo, eu era quem lavava a louça nos dias de domingo. As outras primas ficavam na sala.
Vovó me ensinou a rezar. Era muito católica- um dos irmãos dela era sacerdote. Quando eu ia para lá, no lanche, eu ganhava biscoito de maizena e meus primos biscoitos recheados. Não estranhava isso. Sabia que eu era diferente até na cor. Todos muito claros e eu da cor de jambo. Quando ficou senil vovó ficou mais dócil comigo. Era eu quem ia lhe dar banho todas as manhãs de sábado e domingo.
Vovô era o patriarca da família. Todos tinham que pedir a bênção para ele. Muito crítico, observava tudo. Quando adoeceu e precisou de cuidados, lá fui eu cuidar dele, eu e as moças contratadas. Estas sofriam nas mãos dele. Era sedutor, queria tocá-las, comigo não, me via como neta- talvez o único que me via da família.
Os irmãos de mainha sempre a trataram com um certo desprezo, por não ter casado, pela fragilidade da saúde dela, por não ter ganhado dinheiro.
Não tive nenhuma vida social. O único lugar que ia era à igreja aos domingos, então eu me arrumava toda e me fazia bonita a espera de encontrar um namorado ali.
Não foi ali que encontrei meu par, hoje meu marido.
Mainha optou por viver numa casa de repouso quando eu tive o segundo filho. Eu não teria condições de lhe dar a atenção que exigia. Passei a ser mal vista na família, odiada e ignorada por todos. Fui impedida de visitá-la.
Ao escolher ter minha família fui definitivamente excluída da outra, onde, na verdade, nunca me senti incluída.

domingo, setembro 23, 2018

Miniconto- Manhã cinza

Manhã cinza

Olha o céu chumbo. Não venta. Mormaço.
Estica com as mãos as roupas recém penduradas. Pássaros voam grunhindo.  
Na cozinha, desliga o fogão- o arroz cozinhará sozinho- tem receio de esquecer a chama acesa.
Atravessa a sala, observando coisas fora do lugar.
Varre a varanda. Molha as plantas. A água da mangueira respinga nas pernas e vestido. Enrola a bainha molhada e prende no elástico da calcinha. Joga água nos pés descalços.  
Olha em torno- não há ninguém.
Sente frio, despe-se e entra no chuveiro quente. Lava com prazer os cabelos.
A chuva nas janelas a faz lembrar da roupa estendida. Corre enrolada na toalha para o quintal.
Puxa com força as roupas quase secas. Grampos alçam voo.
Sente frio.


segunda-feira, julho 25, 2016

Miniconto- A lembrança roubada



A lembrança roubada


Atravessa o longo corredor, passos lentos. Desconhecidos, recostados na parede, o cumprimentam no trajeto até o quarto da mãe.
Vacila na porta, enquanto alguns familiares, que há muito não via, estendem a mão e se afastam para que fique só. Ela está com um vestido cinza, meias e sapatos pretos.  Sente um calafrio e deseja cobrir-lhe. “Sinto muito frio no inverno”, parece ouvi-la dizer. Toca com a mão esquerda a perna magra, antes forte. Vem a imagem dela subindo a montanha com seu irmão no ombro, o pai um pouco à frente. Urge fugirem- é guerra. Toca-lhe a testa, debruça-se e a beija.
O irmão aproxima-se e o abraça. Neste instante, percebe que a lembrança foi roubada- ainda não havia nascido.


quinta-feira, setembro 18, 2014

Conto- O outro












Faz calor, as pernas dela doem inchadas, lamenta o dia todo:
"Ai minhas pernas... ai como doem". Fala com o cão, que a olha indiferente.
Teve lindas pernas, além de bonitas, lisas. Ele dizia: "Sente aqui do meu lado", ela colocava suas pernas sobre as dele, que as tocava- dedos suaves- alisando-as em direção à sua púbis. 
"São minhas estas pernas de seda, cor de âmbar", dizia. 
As mãos dele estão longe. Se tivesse morrido sofreria menos, mas não, está vivo, e as mãos alisam agora pernas torneadas e masculinas. Nunca pensou ser deixada por outro. Ainda o vê  sorrindo e se entristece. Às vezes se pergunta se é mais dolorido por ser um homem, ou seria maior a dor se fosse outra? Deve ser belo e forte. Ela é frágil, chora à toa. Não imagina o outro chorando no ombro dele.

As pernas incham porque mal caminha. Não só as pernas sofrem, sente falta de ar, não gosta de abrir as janelas. A casa cheira a mofo, respira com dificuldade. 
Não se importa.

sábado, junho 28, 2014

Conto: Pênalti













Pênalti*

Quando Maria chegou, o bar estava cheio, todas as mesas ocupadas. Excitadas, as pessoas falavam alto, gritavam pedindo chope. Os garçons, suados, entre as mesas, misturavam-se ao bando que buscava uma cadeira extra. Cumprimentou o dono:
- "Seu Antônio, arranja uma cadeira para mim?" Ele virou-se e trouxe um banquinho de trás do balcão.
Ela sentou num canto de onde via a TV de longe. Não fazia questão de acompanhar o jogo, "ficar só em dia de jogo é duro", pensava. Os patrões viajaram, nem ver a TV da sala poderia, não saberia ligar.
O jogo começou, fez-se silêncio,  cortado por gritos de torcida. Lá fora, a rua deserta. A vida havia parado, só o jogo importava, menos para ela, que gostava do calor, do cheiro de gente, fazia tempo não sentia ninguém por perto.
1x1 e veio o intervalo. As pessoas em direção ao banheiro esbarravam nela. Um homem tropeçou no seu pé, abriu um sorriso e disse:
- "E ai? Torcendo muito?"
Ela sorriu, tímida, ele a olhou de alto a baixo, desnudando-a. Sentiu que corou.
Ele ficou por ali ao sair do banheiro.
Devia vir da praia, tinha a pele curtida, pernas num short curto.
Quando o jogo recomeçou, ele encostado no balcão, muito perto, a olhava insistentemente. Ela já não via mais nada, apenas o homem se chegando. Ele sentou ao seu lado, encostava a coxa na perna dela. Ela levantou-se, pensou na sua magreza, no corpo que ninguém vê, pediu mais chope no balcão, voltou a sentar, encolhida no banco.
O homem não tirava os olhos dela, já não via o jogo.
Num certo momento todos gritaram:
- "Pênalti, é pênalti!", o homem a puxou para o banheiro, ela não resistiu, sentiu o cheiro ocre, enquanto ele a levantava, empurrava contra a parede. Fechou sua boca num beijo que lhe tirou o fôlego, enquanto levantava sua saia e arrancava com violência a calcinha.
Ela esqueceu o cheiro. Gozou gemendo num grito abafado pelo beijo do desconhecido. Era dia de jogo do Brasil.

*Este conto está no livro "A cabeça do futebol".

quarta-feira, setembro 25, 2013

O senhor dos meus dias- miniconto/ arquivo


O senhor dos meus dias


Inclino-me na cadeira da mesa da cozinha e o vejo na sala.
Ele curva o corpo pesado e pega o jornal na mesa de centro. Tira os óculos do bolso. Começa a desfolhar o jornal- gesto que antes odiava.
Meus olhos marejam.

terça-feira, julho 24, 2012

terça-feira, março 27, 2012

Mangueiral





Parou a chuva. Olho a janela. Dois meninos arrastam algo branco. Sob as mangueiras um adulto descansa na mata rente.
Entre os troncos, patas. Espero moverem-se. É um cavalo. Alguns bois pastam. Um boiadeiro surge berrando espantando o gado.
O homem, que antes recostava, desapareceu. Uma fumaça surge. Os meninos seguem em direção ao rio arrastando pranchas brancas.
O dia está abafado e estou distante do córrego...

terça-feira, março 20, 2012

Miniconto: Ponto final

Ponto final


Sentiu a mão subindo pelas pernas, mãos suadas, ásperas. Fechou os olhos.
Perdeu a parada. Quando ele levantou, ofegante, viu a boca desdentada sorrindo sarcástica.
Permaneceu ali até o cobrador dizer:
- Ponto final, dona.


PS: O Favre publicou e até hoje vêm leitores de Tks, Favre. 

quinta-feira, março 08, 2012

Miniconto: Mangueiral


Parou a chuva. Olho a janela. Dois meninos arrastam algo branco. Sob as mangueiras um adulto descansa na mata rente. Entre os troncos, patas. Espero moverem-se. É um cavalo. Alguns bois pastam. Um boiadeiro surge berrando. O homem, que antes recostava, desapareceu. Uma fumaça surge. Os meninos seguem em direção ao rio arrastando pranchas brancas.
O dia está abafado e estou tão distante do córrego...

quarta-feira, fevereiro 01, 2012

Uns continhos esquecidos

Mini conto

RenéMagritte
 
 
 
No espelho 
  Olha o rosto no espelho, diferente, mais claro.
Levanta devagar o vestido observando o corpo.
A calcinha apertada marca a gordura, encolhe a barriga. Alonga-se, abaixa o tecido de algodão florido, observa a púbis, alisa os poucos pelos. O rosto se crispa. Levanta a calcinha nas ancas buscando um angulo melhor. A cabeça cai para o lado, volta para o centro, retesa-se.
É com os olhos dele que se vê agora.
Ainda sente o elástico a apertando, mas se reconhece naquele outro olhar e sorri.

Micro conto 

Sentiu a mão subindo pelas pernas, mãos suadas, ásperas. Fechou os olhos.
Perdeu a parada. Quando ele levantou, ofegante, viu a boca desdentada sorrindo sarcástica.
Permaneceu ali até o cobrador dizer:
- Ponto final, dona.


PS: O Fabre publicou e até hoje vêm leitores  de Tks, Fabre.

terça-feira, dezembro 13, 2011

Miniconto: Vaga







Vaga

Olhou o relógio: oito e meia da manhã. Os pés molhados, a grama presa entre os dedos, o calor do sol alto incomodavam mais que a falta dele.
Há dias ele não dá notícias, perguntou numa mensagem, via telefone: “Como vai tudo por ai?”. Quis ser vaga para não o assustar, sabe que o encontro o perturbou, sabe que ele está em conflito.
Agora espera. Ele disse: “Vou te ligar no fim do dia, quando o movimento acabar.”
Nada. Pensa: Tantos anos sem pensar nele, por que se importar?
Cansada, sobe as escadas para o primeiro banho do dia. A água a acalma.
Quem sabe no fim do dia ele telefona?

segunda-feira, outubro 17, 2011

Miniconto: A flor



A flor

O sol a pino aquecia o pátio onde eles se protegiam na estreita sombra. Amontoavam-se recostados na parede encardida. Alguns jogados no chão, alheios. Talvez não sentissem o queimar.
Os homens, com canecas nas mãos, batiam ruidosos no portão de ferro, que se abriria em alguns minutos. Era hora do almoço.
A alegria do primeiro emprego desapareceu ao cruzar a porta para os alojamentos, que recendiam à urina.
Uma mulher lhe sorria sentada perto da entrada. Vigiava a passagem. Esperaria alguém? Boca desdentada, faces rubras, boca carmim borrada. Uma flor murcha caía de sua orelha esquerda. Retribuiu o sorriso.
No carro, de volta, chorou. Não sabe se por eles ou por ela.

quinta-feira, outubro 06, 2011

Miniconto- Mormaço



O dia está nublado. A grama molhada traz calor. O chão da varanda brilha. Hoje não será preciso molhar o jardim. Ao longe, o choro de uma criança desde o amanhecer. O boiadeiro me despertou com seu 'eia, eia'. Da janela vejo o gado disperso na Fazenda vizinha. Porções de branco na pastagem. O amigo disse: "São garças, não emas.". Não as vejo mais perto apesar do rio tão próximo. Onde o belo voo ao entardecer? Escondem-se de mim, as garças?. Olho meu escritório, livros por toda parte, a mesa desarrumada. Atrás, à minha direita, duas pranchas de surf encostadas, à frente, na sala, duas guitarras apoiadas no sofá. O olhar encontra, ainda, os gatos enlaçados- ela, no cio, geme. O mormaço parece retardar o tempo.

A mulher de preto- Miniconto










Ainda atordoado com as palmas saí para o saguão. Pedi um táxi, não gosto de dirigir à noite. Ao afundar no banco de trás, exausto e feliz, me vem a imagem da mulher de preto sentada na primeira fila. Já a vi em algum lugar, o cansaço não me ajuda a lembrar. Talvez um rosto conhecido. Das três perguntas que me fizeram, a última foi dela, perguntou algo sobre amor.
Na cama, após alguns minutos deitado, revejo seus traços, agora sim, sei quem é. Mas como? Está longe! Seria mesmo ela? Como soube da palestra? Por que não veio até mim?
No dia seguinte os e-mails retornam, uma mensagem automática diz que ela está viajando e volta só daqui a um mês.
Sinto-me estranho.


Postado antes em 2006. Aqui.

quinta-feira, setembro 08, 2011

Miniconto: Desejo






Desejo



Quando cheguei com as flores ela me recebeu com um beijo e um:
- Obrigada, querido.
Sumiu, voltou com a jarra de vidro e margaridas brancas.
Na rua, com as flores na mão, me senti nu, depois desconfortável no meio da sala, foi a primeira vez que subi.
Ela veio em minha direção alegrinha, me beijou e me apertou contra ela.
Quando a vejo assim, leve, meu lado taciturno sobressai. Silencio.
Ela disse:
- O que foi?
- Nada, não foi nada, respondi sem convencê-la.
Puxou-me para o quarto. Mandou que me despisse e deitasse. Obedeci em silêncio. Continuou vestida. Eu nu.
Ajoelhou-se aos meus pés e os massageou. Meus pés doem ao serem tocados. Ela estalou cada dedo, dizendo baixinho:
- Se solte, vamos, se solte.
Então, me alisou com aquelas mãos pequeninas, apertou alguns pontos sensíveis- sempre muito compenetrada.
Quando me viu entregue, despiu-se olhando desafiadoramente nos meus olhos. E veio felina, deslizando a partir dos meus pés esfregando seu corpo leve no meu até alcançar o que desejava.
Ai, sorriu e me beijou vorazmente. 
Montou até a exaustão.


Publicado anteriormente em 20/09/06

segunda-feira, agosto 01, 2011

Insensatez- um conto para Tom Jobim


Insensatez*

Insensatez*


"Venha, estou te esperando. Desça a Montenegro, entre na terceira rua à direita. É um prédio antigo e pequeno no meio da quadra", disse ele.

Eu fui, como sempre. Obedeço aos homens.

Tinha pressa. As mãos suavam ao descer do ônibus no ponto indicado.

Lembro de um sonho em que deslizo pela Rua Prudente de Moraes deserta, desejando alar ao seu encontro.

Na esquina, um bar, mais à frente duas vilas. Adoraria morar no bucolismo de um espaço silencioso, com flores nos jardins. Com este olhar, me deparei com a vila ao lado do prédio dele.

Anoitecia.

Bati à porta, alguém tocava violão, abafando meus toques. Repeti as batidas com mais força. O som do violão cessou. Ruídos de cadeiras e vozes. Ele abre a porta no momento em que eu inspirei fundo, aflita, pensava o que fazer se não me ouvissem.

Havia homens espalhados pela sala, alguns no chão em almofadas, eu era a única mulher. Um deles me olhou com certo desdém, por pouco não me sinto intrusa, apenas porque os olhos dele me observavam e sorriam.

Minutos depois ficamos a sós entre copos e cigarros espalhados sobre o piano, chão, janela. A pequena sala, que dava para a frente do prédio, rescendia a cigarros. Comecei a juntar copos e cinzeiros. "Deixe, depois eu limpo", ele disse. "Limpamos agora, é melhor", respondi.
Eu precisava arranjar coisas para fazer. Não queria que ele percebesse minhas mãos frias e úmidas. Queria mais tempo para me acostumar à idéia de estar ali.

Na pia cheia de copos, garrafas vazias, um gato cinza de olhos azuis muito claros tentava subir.

Ele veio por trás e beijou minha nuca. Me desvencilhei caminhando em direção à janela. "Veja o Cristo, dá para vê-lo..."

Eu senti seu hálito de álcool e cigarro- um cheiro que me excitava.

Segurou meu rosto entre as mãos em taça, beijou meus lábios me sorvendo. De olhos fechados eu adivinhava o rosto que amei no primeiro encontro. Abri os olhos para conferir. Aos poucos fomos nos afastando da janela. Debruçando-se sobre mim, deitou-me no sofá, abrindo, com dedos ágeis, caminho para a minha entrega plena.

Um dia ele viajou, precisava ir a trabalho, disse. Não voltou. Eu chorava desolada. Enviei uma carta, por um amigo comum, onde dizia:
“Desde sua partida minha vida é só tristeza e melancolia. Não sei viver assim. Volte”.

Meses depois recebo um telefonema. Era Vinícius, dizia que tinha algo para mim. Fui até lá e ele me cantou, jamais esquecerei, esta música, como um recado do Tom:

“Chega de saudade

... Não quero mais esse negócio de você longe de mim,

Vamos deixar esse negócio
De você viver sem mim"...

Ele voltou, anos depois. Soube pelos jornais


* Este conto eu fiz para um concurso intitulado Bossa Nova do Estadão. Era preciso ter a frase de 'Chega de saudade'. Selecionaram vários, não lembro quantos. Não peguei nem resfriado, aliás... nunca pego resfriado hihihi
Acho que ficou muito carioca. Eu gosto, me sinto nos braços de Tom, nunca é demais sonhar.
E, pra quem não sabe, eu quase fui sua vizinha, morei no 97, Nascimento Silva, ele no 107, mas em 1970, quando fui para lá ele já vivia fora- nos States, acho. Eu amava o Tom. Ainda amo, pra mim não morreu, apenas partiu.

domingo, julho 31, 2011

Na vitrine- conto ainda não acabado

Na vitrine



Com o coração descompassado atravessou a rua correndo. Um motorista freou, buzinou irritado. Era ele do outro lado da rua, sabia. Vestia uma camisa xadrez por dentro da calça e cinto de couro. “Está diferente, mas é ele”. Temia que desaparecesse. Diante de uma vitrine, tocou levemente o seu braço. Ele virou-se, disse desconcertado:

- "Minha mulher está ai dentro, não posso falar com você". Virou-se e dirigiu-se à porta de entrada.

Olhar turvo perdido nas manequins, não via nada. Saiu, passos lentos, esbarrando nas pessoas.

Na esquina, no meio fio, alguém perguntou se precisava de ajuda.

- “Não obrigada”. Não queria nada.

Tempo interminável até a penumbra da sala.

Adivinha uma jovem ao seu lado que o obriga a se cuidar. Ela não saberia dizer: "Não beba mais por hoje". Bebiam juntos, se amavam embriagados, jurando amor eterno.

Deixou-se estar no sofá até que o cão viesse, esfomeado, pedir comida. Ela não precisaria comer estes dias, sabia.