quinta-feira, julho 12, 2007
Hoje é dia de Contardo
CONTARDO CALLIGARIS
"Ratatouille" e o desejo
Quando o caminho do nosso desejo parece árduo, devaneamos para não agir
CHEGAM AS férias escolares, e os filmes para crianças invadem as salas.
Em "Harry Potter e a Ordem da Fênix", pré-adolescentes e adolescentes encontrarão mais uma chance para sonhar que eles são órfãos, bruxos e heróicos. Outros preferirão o "Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado" e se imaginarão dotados de poderes descomunais.
Nenhum problema: o devaneio, além de ser prazeroso, é um dos caminhos pelos quais se enveredam e se desenvolvem nossos desejos. Mas devanear e desejar não são a mesma coisa. Ao contrário, devanear pode ser um jeito de contornar o nosso desejo, ou melhor, de celebrá-lo aparentemente (de olhos abertos ou fechados), mas sem pagar o preço de sua realização e sem correr o risco do malogro de nossos esforços. Em suma, sobretudo quando o caminho de nosso desejo parece árduo e improvável, devaneamos para não agir.
Por isso, gostei de um outro filme para crianças, que estreou na semana passada, "Ratatouille", de Brad Bird. Essa animação, da Pixar, conta a história de Remy, um rato que deseja ser chef de cozinha.
Se você fosse um rato e quisesse ser chef, qualquer orientador lhe daria o conselho seguinte: esqueça e sonhe com algo diferente. Afinal, numa cozinha, não tem bicho menos indicado do que um rato. A vigilância sanitária fecha os restaurantes freqüentados por roedores; imagine o que ela faria com um restaurante capitaneado por um rato. Sua família também faria o impossível para que você mudasse de idéia. Rato pode comer restos e lixo ou se insinuar nas despensas e dar umas mordidas nos suprimentos, mas cozinhar alimentos? Inventar sublimes combinações de sabores?
Preparar amorosamente pratos tão bonitos quanto suculentos? Isso, convenhamos, não é coisa para rato. Ora, Remy é cabeça dura. Ele está disposto a desafiar a autoridade paterna, o conforto do clã e as convenções sociais, que lhe são francamente desfavoráveis. Não é porque sente o apelo do sucesso ou imagina futuros lucrativos. É porque cozinhar, para ele, significa dedicar-se ao que ele sabe fazer, realizar quem ele é.
Tempo atrás, escrevi uma crônica sobre a pouca ousadia dos desejos de nossos jovens. Pois bem, como antídoto, prescrevo "Ratatouille" a todos, crianças e pais. Quando pensamos no futuro de nossos rebentos, temos, em geral, uma visão limitada, preocupada com a "possibilidade" de seus desejos. Na maioria dos casos, preferimos que eles tenham desejos "plausíveis".
Parece lógico. Mas o problema é que medimos esse "plausível" a partir da lição de nossos próprios limites ou fracassos. Isso, sem mencionar nossa vontade de guardar os filhos por perto e, eventualmente, nossa inveja, que é inconfessável, mas existe: nem sempre é fácil aceitar que nossos filhos inventem para si uma vida melhor do que a nossa.
O rato que ambiciona ser chef de cozinha é como o menino que pretende se tornar escritor, ator, violinista ou astronauta. Em geral, nos filhos que desejam uma vida que atropelaria a cerca de casa, a resistência dos pais encoraja uma hipertrofia do devaneio, que compensa o abandono dos sonhos "extravagantes". Este é o recado: "Seja razoável em seus desejos e solte-se no devaneio", "Resigne-se ao plausível e, em compensação, alugue DVDs ("Harry Potter" ou o "Quarteto", por exemplo) para o fim de semana". Os devaneios do domingo consolarão e inibirão o anseio "louco" de correr atrás de aspirações incomuns.
É possível entender "Ratatouille" como uma apologia da sociedade aberta, com oportunidades para todos: até um rato, com dedicação e persistência, pode se tornar chef. Mas, antes disso, o filme é uma homenagem à coragem de quem se autoriza a procurar a vida que ele quer. A história de Remy não inspira devaneios de glória culinária. Se o filme nos faz sonhar, é com a galhardia de quem não larga o osso (o queijo, no caso) de seu desejo.
Mais uma coisa: "Ratatouille" é também um excelente filme sobre a arte de cozinhar. É bem provável que, para quase todos, a primeira gratificação tenha sido oral. Afinal, o seio e a chupeta nos foram impostos como respostas universais a qualquer choro. O grande cozinheiro é aquele que, ao mesmo tempo, evoca em nós a lembrança das primeiras gratificações e nos surpreende com uma experiência sensorial inédita, inesperada. A cozinha é isto: a arte de nos dar a satisfação mais primitiva de uma maneira nova.
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