segunda-feira, janeiro 07, 2008

Michelangelo Antonioni e "Tecnicamente Doce"



Ontem, eu li na 'Folha' este roteiro e quis dividir aqui, sei que a maioria não tem acesso ao UOL ou ao jornal impresso.
Uma pena ele não ter feito o filme, seria um dos meus preferidos, eu creio.

Leia cenas do roteiro de "Tecnicamente Doce", escrito por Michelangelo Antonioni nos anos 60

Seqüência 16 - Casa de T - Interior - Dia

Um interior rústico: dois quartos, um banheiro. Um dos dois quartos é também a sala de estar. Uma jovem mulher está tirando o seu pulôver.

Jovem Mulher:
Não estou me sentindo bem. Acho que é excesso de felicidade.

Ela continua a tirar a roupa enquanto T a observa. Ela o faz de forma desenvolta: poucos gestos, rápidos, e está nua.
Ela se joga na cama. Poucos instantes depois, T a acompanha, também nu.

T:
Deveria ser tão simples ir para a cama juntos, e no entanto eu não consigo deixar de me maravilhar com isso.

Um silêncio.

T:
Acho que estou envelhecendo.

Jovem Mulher:
Então, vou embora.

T a segura pelos braços.

T:
Tinha que acontecer logo comigo, encontrar alguém como você.
Jovem Mulher:
Bem, pelo menos você terá salvado alguém em vida.

T fica subitamente sério.

T:
Não gosto do que você acabou de dizer.
A jovem mulher sorri. Eles se olham longamente.
Jovem Mulher:
E esse silêncio, o que quer dizer?
T:
Nada. O silêncio é só o silêncio.
Jovem Mulher:
Hm... nós somos bem complicados.

T mexe nos cabelos da jovem mulher, levando-a a ficar de perfil. Ela também se move para olhá-lo melhor. Agora ela se deita de costas, com as pernas ligeiramente abertas. T aponta para os dois corpos na cama.

T:
E nós, ao contrário, é tão simples.
Jovem Mulher:
É, tão simples.
Colocando as mãos sobre o seu sexo, ela abre ainda mais as pernas.
Jovem Mulher:
Entra.

Seqüência 30 - Casa de T na Sardenha - Interior/Exterior -Dia
A jovem mulher e T estão no quarto. Ela parece agitada, não para de ir e vir.

T:
O que você fez nestas últimas horas?
Jovem Mulher:
Erros.
T:
O que você quer dizer?
Jovem Mulher:
Tudo que eu faço são erros.
T:
Errare humanum est.
Jovem Mulher:
Não seja banal.
T:
Qual foi o erro desta vez?
Jovem Mulher:
Estar com um cara como você.
T:
O que quer dizer "um cara como eu"?

Uma pausa.

Jovem Mulher:
Acabei de pensar em algo que eu nunca disse.
T:
Como assim?
Jovem Mulher:
Um dia eu estava falando com alguém e pensei: eu vou terminar essa frase e depois eu conto algo definitivo para ele.
Em vez disso, esqueci o que eu ia dizer.
T:
E o que era?
Jovem Mulher:
Não lembro. Mas se eu tivesse dito essa frase, tudo teria mudado, tenho certeza.
T:
Tudo o quê?
Jovem Mulher:
Eu não seria mais como sou.

Ela continua a ir e vir no quarto, pega um jornal que começa a folhear. Alguma coisa chama a sua atenção.

Jovem Mulher:
Você sabe quantas pessoas morreram aqui hoje?
T:
Não.
Jovem Mulher:
Quatro. Está numa rubrica que se chama "crisântemos".
Tem até a idade delas. Uma delas tinha um minuto de vida.

T se volta para olhar para ela.

Jovem Mulher:
Pense nisso: ele viveu um minuto. Menos que uma borboleta.
De repente o seu tom muda, como se ela falasse para si mesmo.

Jovem Mulher:
E eu, ao contrário, tenho tantos anos diante de mim.

[A última cena do filme]
Seqüência 55 - Descampado -°Exterior - Dia
Uma imensa clareira começa no ponto em que a selva acaba. Um terreno sem vegetação, uma savana. À medida que nos distanciamos da floresta, a grama também tende a desaparecer. Então começam as estradas. Largas, asfaltadas. Todas convergem na direção do mesmo ponto no horizonte, onde se vê, branca contra o céu azul, uma cidade, toda de vidro e de cimento.
Um grupo de crianças entre oito e 12 anos está acampado à margem da floresta. Eles organizam um jogo, capitaneados por um menino mais velho, de 14 anos. Eles cobriram uma zona da floresta com uma rede, na esperança de que um animal selvagem e com fome se aventure até ali e caia na armadilha que armaram.
Um animal se aproxima lentamente. Não se pode ainda discernir que tipo de animal é. As crianças silenciam, em lenta espera. O animal está próximo, agora, da armadilha. As crianças seguem os seus movimentos com uma angústia controlada. O animal estanca. Está sem fôlego e não consegue mais avançar. Chegou até ali cravando as suas unhas na terra. É então que reconhecemos S.
O rapaz levanta o rosto e vê, ao fundo, o sol e as silhuetas dos meninos. Num último esforço, ele estica o braço e consegue se arrastar por mais alguns metros. Tem dificuldades em respirar, mas, centímetro após centímetro, continua a avançar. Até o ponto em que ele percebe uma corda estendida a sua frente. Ele a reconhece confusamente: uma corda, um objeto familiar. Ele a segura como quem agarra a sua última esperança. A armadilha se tende, aprisionando S. As crianças reagem com satisfação. Observam o que ocorre com uma fria curiosidade. Reconhecem um homem nesse ser que avança, mas isso só faz aumentar o interesse delas.
O homem tem os olhos fixos na direção das sombras, atrás da armadilha. Ele não tem nem mesmo a força de abrir a boca e pedir ajuda. Estende a mão e espera. As crianças não reagem. S avança mais um pouco, mas as crianças permanecem impassíveis. Seguem a sua agonia com muita atenção, como se estivessem assistindo a uma lição de história natural. A morte de um homem, um espetáculo ainda desconhecido.
Esse diálogo surdo entre S e as crianças se prolonga por mais alguns momentos -e então, ele não tem mais a força de levantar a cabeça ou os braços. Deixa-se cair e permanece assim, de costas, a olhar o céu cada vez mais azul e o azul que pouco a pouco se torna rosa. O rosa se transforma numa mancha que toma a forma de uma casa: uma casa rosa, e no portal a silhueta de uma jovem mulher.
E então tudo fica escuro.
Ele parece tão velho agora. O jovem rapaz, frente a essas crianças. Um velho cadáver que nem mesmo os animais selvagens comerão.
Fim.

2 comentários:

Anônimo disse...

Bem deves saber que esse roteito é do Italo Calvino, certo?
Só como sugestão, se gostaste tanto assim do roteiro alguns dos contos de d'Os Amores Difíceis e talvez uns d'O General na Biblioteca podem te agradar...

Algumas das reflexões do Eremita Em Paris também comentam de maneira interessante o relacionamento entre dois jovens...

Abraço anônimo

Anônimo disse...

Bem deves saber que esse roteito é do Italo Calvino, certo?
Só como sugestão, se gostaste tanto assim do roteiro alguns dos contos de d'Os Amores Difíceis e talvez uns d'O General na Biblioteca possam te agradar...

Algumas das reflexões do Eremita Em Paris também comentam de maneira interessante o relacionamento entre dois jovens...

Abraço anônimo