segunda-feira, janeiro 07, 2008

Antonioni e Walter Salles falam sobre "Tecnicamente Doce"



Minha batalha contra o filme

Michelangelo Antonioni

A batalha entre o filme e mim se encerra com a publicação deste roteiro. Essa batalha durava desde 1966, quando escrevi a primeira versão da história.
Em paralelo, eu estava desenvolvendo o roteiro de "Blow-Up". Ofereci os dois ao produtor Carlo Ponti [1912-2007], que preferiu o segundo.
Depois de rodar "Blow-Up", finalmente recebi o acordo de Ponti para a realização de "Tecnicamente Doce". Quando tudo estava pronto para a filmagem, roteiro, locações, equipe técnica, atores, o financiamento me foi retirado. Os atores do filme seriam Jack Nicholson e Maria Schneider.
Falei um pouco acima em "batalha". Eis por quê: esse era um filme que eu queria fazer acima de qualquer outro, mesmo sabendo quão árduo era o projeto. Por que árduo? Porque o que estava em jogo era um mergulho no coração da selva amazônica, onde deveríamos ficar no mínimo dois meses.
Eu já tinha conhecido todo tipo de selvas e de florestas virgens e percorri o mundo em busca daquela que fosse a mais intimidante -e a encontrei na Amazônia. Posso dizer hoje que existe uma relação inversamente proporcional entre o horror de uma floresta virgem e sua fotogenia. Quanto mais densa a floresta, menor a sua fotogenia.
A vegetação é tão espessa que os verdes se fundem uns nos outros, atenuando as nuances, diminuindo os relevos. A sombra domina. Numa vegetação tão compacta, o sol penetra com dificuldade, tornando necessária a utilização de projetores. Mas tenho dificuldade em imaginar uma luz artificial na floresta, por causa das sombras que ela fatalmente provocaria, falseando a realidade.
A minha intenção era fazer desse "fragmento de filme" uma espécie de oposição crua entre a luta de dois organismos humanos e a de outros organismos, vegetais e animais. Mas também queria falar de uma outra luta ainda mais aterrorizante, aquela que ocorre entre as plantas que lutam pelos poucos raios de sol. E a dos animais, à cata de qualquer tipo de alimentação. Minha intenção, em resumo, era tocar no tema do canibalismo, declinado sob todas as suas formas.
Adicione-se aos problemas de realização aqueles que a produção fatalmente traria, e pode-se compreender quanto minha perplexidade em relação ao filme era legítima. No entanto, durante o verão de 1966, eu tinha ultrapassado essas dificuldades. Me considerava o vencedor de uma batalha entre o filme e mim.
Mas tinha me esquecido do árbitro implacável que tem entre suas mãos a possibilidade de decidir se um filme vai existir ou não -o produtor. Quando Carlo Ponti me declarou de forma imprevista e inexplicável que não iria mais financiar o filme, o mundo que eu tinha logrado construir com tanta dificuldade no meu espírito, ao mesmo tempo fantástico e realista, ruiu de uma só vez. Os escombros ainda subsistem, em algum lugar no fundo de mim.



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Este texto foi publicado em "Techniquement Douce" (ed. Einaudi, Itália, 1976). Tradução de Walter Salles .




Atração e repulsa

WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA

U m triângulo amoroso. T, jornalista de 37 anos, sente-se estrangeiro no seu próprio mundo. S, jovem antropólogo, também. Uma mulher de 22 anos que "ama sem saber como" é o elo de ligação entre esses dois homens que se desconhecem. Os temas que definem o cinema de Antonioni afloram em "Tecnicamente Doce". A alienação e a desumanização trazidas por meios de produção cada vez mais massificados. A oposição entre o mundo "civilizado" e o estado "selvagem". A impossibilidade amorosa.
Um estado de insatisfação latente vai conduzir T e S, personagens aparentemente opostos, na mesma direção. Ambos abandonam a Sardenha (Itália) para se perderem no coração da selva amazônica. A aridez em oposição à umidade. Ao longe, uma outra miragem: Brasília, "feita de vidro e concreto". Antonioni escreveu o roteiro com seu companheiro Tonino Guerra e Mark Peploe, com quem viria a colaborar em "Profissão: Repórter".
Veio ao Brasil, fez locações na selva amazônica e em Brasília. Teve uma relação de atração e de repulsa pelo que viu. O resultado é um dos roteiros mais rascantes e radicais que Antonioni criou. O diretor disse que queria fazer esse filme "mais do que qualquer outro". Chegou a definir toda a equipe técnica e escolher os atores: Jack Nicholson e Maria Schneider. Nunca conseguiu filmar. Pouco antes da rodagem, o produtor Carlo Ponti retirou o financiamento.
Frustrado pela experiência, Antonioni retomou os temas do filme que nunca viria a realizar no Brasil em "Profissão: Repórter". Ambos começam e acabam da mesma maneira: pelo desconforto de um homem em crise de identidade e pela inevitabilidade da morte.



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WALTER SALLES, 51, é cineasta. Dirigiu "Terra Estrangeira", "Central do Brasil" e "Diários de Motocicleta", entre outros filmes; atualmente finaliza "Linha de Passe" e trabalha em "On the Road", ambos ainda sem estréia prevista.

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