Continuação:
Seria o caso de defender a pena de morte, a
prisão perpétua, a redução da maioridade penal? "Não sei", escreveu Janine.
Os críticos mais inflamados não levaram em conta esse "parágrafo das
dúvidas". Janine foi tomado como um defensor da pena de morte e da tortura
medieval. Com muitos agravantes: trata-se de um filósofo, um professor de
Ética na USP, e um "homem público", dado o fato de ser diretor da Capes.
Começo por essa última circunstância. Se o artigo tivesse sido escrito por
um governador ou um coronel da PM, o caso seria bem diferente. Autoridades
públicas têm a obrigação de separar o que é da ordem de seu sentimento
subjetivo e o que pertence à esfera de sua ação prática. Cabe-lhes, de fato,
"deduzir políticas públicas" de suas convicções.
Devem ademais calar-se, quando há o risco de que seus subordinados "deduzam"
providências reais a partir dos sentimentos privados que tenham vontade de
expressar. Mesmo se fosse numa conversa particular, um governador que
dissesse "imaginar suplícios medievais" para punir criminosos estaria
cometendo uma impropriedade gravíssima.
Mas um intelectual, mesmo se diretor da Capes, não é "homem público" nesse
sentido. Sua função pública é discutir, levantar problemas. Muitas pessoas
consideraram, entretanto, que Janine não deveria fazer desabafos; poderia
dizer o que disse numa roda de amigos, não na esfera pública.
Acho equivocada essa opinião. Nada mais brasileiro do que tolerar, por
exemplo, o machismo em piadinhas de botequim, para depois assumir pose
politicamente corrreta em seminários e palestras.
E Janine não fez apenas um desabafo. Ele levantou um tema complicado: qual a
relação entre o seu sentimento pessoal, feito de raiva e desejo de vingança,
com sua opinião teórica a respeito da pena de morte ou da tortura?
A questão é importante, e merece ser discutida. É nesse ponto que discordo
de Janine. Nossos sentimentos, dos quais cabe tratar sem hipocrisia, não têm
como se traduzir em políticas públicas coerentes. Janine parece querer
diminuir o espaço entre uma coisa e outra. Mas isso, a meu ver, tende a ser
impossível.
Dou um exemplo. Janine pode querer, agora, que os assassinos de João Hélio
sofram imensamente na prisão. Mas se aparecer no jornal uma descrição dos
"suplícios" a que foram submetidos, imagino que a sensibilidade de Janine
reagiria com o mesmo horror com que reagiu ao assassinato.
No artigo de domingo passado, rebatendo os críticos, Janine afirmou que
"calar em público os sentimentos que se referem à vida pública induz à idéia
do intelectual como quem pensa sem paixões, a esconder a face oculta de
nossa comum humanidade".
Mas pensar é, a meu ver, pensar sem paixões. Pelo menos, resulta de uma
paixão particular, feita de compromisso com a verdade, com a lógica, não do
que há de mutável nas nossas disposições emocionais. As emoções do público,
entretanto, voltaram-se contra Janine. Será que não se voltaram, na verdade,
contra aquilo que todos nós sentimos dentro de nós mesmos? Nosso desejo de
vingança deve ser calado: que Janine se cale, então...
E não apenas nosso desejo de vingança. Que seja reprimida, também, a
sensação que temos de fraqueza, de imobilismo, de impotência diante da
barbárie. Sem dúvida, aplicar de verdade as leis vigentes já seria uma
grande coisa. Mas desconfiamos que dizer isso é chover no molhado, e que
repetir pela milésima vez a defesa de leis que não funcionam pode muito bem
traduzir-se em frieza e indiferença na prática.
Esse é o ponto em que Janine tocou, e que torna o seu texto difícil de ser
suportado.
PS: Aqui você lê o artigo do Janine.
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