quinta-feira, junho 22, 2006

Hoje é dia de Contardo.


















Os revolucionários silenciosos



Contardo Calligaris


Uma alternativa entre liberdades "formais" e liberdades "reais" é um engodo do século 20

O PSICANALISTA Fábio Hermann observou uma vez que turista é quem tira seu retrato colocando-se na frente do lugar visitado, mas olhando para a câmera: somos turistas quando viajamos de costas para o real. Pois bem, há uma nova onda de turismo revolucionário. A revista italiana "Panorama" (8/6/2006) relata que a Venezuela de Chávez é destinação de pacotes para quem busca um sonho de socialismo realizado. Garotos-propaganda desse turismo são intelectuais que viajam à custa do governo, ficam no Hilton de Caracas, visitam o que lhes é mostrado, aparecem na TV com Chávez e cantam seus elogios. Entre eles, compareceram Gianni Vattimo (estranho, por se tratar de um agudo pensador da pós-modernidade) e, previsível, Toni Negri (ex-mentor das Brigadas Vermelhas e agora militante da antiglobalização). É certo que Chávez promoveu programas sociais relevantes para a Venezuela. Mas são também conhecidos seu uso de petrodólares para influenciar a política de outros países da América Latina, a ameaça de censura que pesa sobre a imprensa venezuelana etc. Aos turistas revolucionários de Caracas, sugiro uma leitura. Rossana Rossanda acaba de publicar (na Itália) suas memórias, "La Ragazza del Secolo Scorso" (a moça do século passado; Einaudi). Aos 19 anos, Rossanda entrou na Resistência antifascista e no Partido Comunista Italiano, do qual, depois da guerra, se tornou dirigente. Em 1969, foi expulsa do partido por suas posições críticas. Logo, foi fundadora de um jornal, "Il Manifesto", que foi uma voz insubstituível para a esquerda italiana durante os "anos de chumbo" (as décadas de 70 e 80, em que a Itália viveu entre o terrorismo golpista da extrema direita e a atuação sanguinária da extrema esquerda, em particular das Brigadas Vermelhas). Do livro de Rossanda (maravilhoso por sua honestidade), escolho um episódio. Em 1949, Rossanda visitou a União Soviética como membro de uma delegação italiana. Quase 40 anos mais tarde, em Moscou, ela encontrou uma velhinha que tinha passado a metade de sua vida nos campos de concentração soviéticos. A velhinha lhe perguntou: "Mas por que você veio em 1949 ajudar Stálin?". Rossanda não alega que ela não sabia: Arthur Koestler, David Rousset e George Orwell já tinham levantado suas vozes. Embora ela tenha sido uma das primeiras a falar, ela questiona seu silêncio e medita sobre as três explicações clássicas. 1) A União Soviética é uma coisa, a Itália é outra: aqui na Itália, precisamos de um mito. Pressuposto: é melhor deixar as bases no escuro, pois elas não entenderiam. Ora, a "tática" de mentir corrompe e destrói a vida democrática interna da organização que a adota. 2) A União Soviética é ameaçada, sua "rigidez" é uma necessidade de defesa. Como aceitar uma necessidade de defesa cujo preço são os próprios valores pelos quais a gente luta? Nos EUA de hoje, por exemplo, as medidas excepcionais contra o terrorismo, se elas comprometerem os valores da democracia, sancionarão, de fato, o triunfo do adversário. 3) Para que servem os direitos políticos sem a segurança de poder comer e dormir ao abrigo de um teto? "Não há liberdade atrás da cortina de ferro?" "E que liberdade temos nós, a de perder o emprego e passar fome?" Ora, a idéia de uma alternativa entre liberdades "formais" e liberdades "reais" é um dos grandes engodos do século 20. Por que deveríamos trocar a liberdade pelo pão ou o pão pela liberdade? O silêncio da esquerda foi medo de perder votos e medo de que os partidos se desagregassem. São as mesmas razões que tornam nossa palavra covarde na vida cotidiana: o medo de perder o amor do outro e o medo de introduzir uma falha na imagem que temos de nós mesmos. Receitas para o desastre. Os turistas revolucionários poderiam me responder que é preciso considerar o conjunto da "revolução" venezuelana, sem se perder em "detalhes". Rossanda conta que, em 49, ela não disse nada quando, visitando a galeria Tretjakov, ela descobriu que os quadros de Malevich e de Kandinsky estavam no porão, substituídos por crostas social-realistas. É um detalhe? Pode ser. Mas suspeito, com Rossanda, que o socialismo tenha se tornado pesadelo também porque ninguém conseguia perguntar por que os quadros de Malevich e de Kandinsky estavam no porão.

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