quinta-feira, março 14, 2024

Cerimônia do adeus- minha mãe, Léa Diz








A minha mãe virou uma estrelinha, como diz meu netinho, e também uma árvore, porque foi enterrada.
A cerimônia de adeus foi hoje de manhã e foi linda.
Ela estava bonita, suave, com uma blusa branca de algodão com bordados delicados. Estava em meio de centenas de crisântemos brancos, uma de suas flores preferidas, que cultivava no jardim em Curitiba, onde também tinha papoulas, dessas tirava as sementes e colocava num pãozinho, feito em casa, delicioso.
Choramos muito pensando que não teremos mais a presença requintada e de humor ácido dela.
Minha mãe foi uma mulher forte e destemida- 
aos 56 anos, acabou em casamento de 36 anos e foi viver um novo amor em São Paulo, onde fez literatura no Mackenzie e trabalhou com o "marido" num escritório na Av Paulista.
O amor durou cinco anos.
Voltou para Cabo Frio, deu aulas de literatura na faculdade, fez mestrado em Niterói. Viajava de ônibus. Fazia empadas para ajudar na sobrevivência, porque a pensão do meu pai, militar, foi suspensa durante os anos que viveu com o segundo marido.
Um detalhe da ousadia, ela e os dois maridos eram primos em terceiro grau, meu pai sofreu muito porque era amigo do "tio Kid", um carioca sedutor e jogador, o que desencantou minha mãe, mulher de princípios rígidos, que havia sido muito religiosa. Sim, contradições ai, mas...se ela tivesse vivido em 60, 70, teria sido uma mulher livre e mais feliz. Danton, meu filho, disse isso ontem. Percebia- se a insatisfação pelas limitações que teve. Era frustrada e amarga.
Dela herdamos a fome de cultura, a curiosidade por tudo, a facilidade na escrita- meu amigo Contardo disse que estava no DNA, quando leu o conto que enviei dela.
Deixou um livro de poemas, a maioria de amor,  alguns contos, que eu guardo. Deixou também uma biblioteca com centenas de livros, que infelizmente estão sem leitores. Só livros de qualidade, muitos em francês.
Sua porta preferida era Cecília Meireles, fez a tese de mestrado sobre a obra dela.
Li muitos de seus livros muito jovem. Lia alguns escondido, tipo Françoise Sagan.
Ela amava artes-plásticas, sempre teve amigos pintores- o que herdei também.
Meu cheiro preferido é de ateliê de pintura.
Desenhava traços leves e bonitos, esculpia São Francisco de Assis em barro, que o tempo desmanchou.
Mulher exigente em todos os aspectos, a comida tinha que ser correta e o prato quente e bonito, senão não comia.
Amava camarão, empada, uma fatia de torta de qualidade e pouco doce. Foi excelente doceira, aprendeu com amigas de Curitiba a fazer tortas deliciosas, fazia torta folhada, de nozes, de ricota, de damasco. Minha irmã aprendeu alguns doces, mas sempre pesa mais que a mãe no açúcar.
Minha torta preferida era de pão de ló com morangos crus e chantilly. Na minha infância, em todos os meus aniversários, ela fazia. Havia em todos as festinhas, também, um biscoito de amêndoas delicioso, que lembra demais macaron, o biscoito francês. Quando disse isso para a amiga parisiense, ela não gostou. Como pode?  Se orgulham dos seus doces deliciosos.
Era orgulhosa, dizia muito: Não gosto disso!
Se eu respondesse, viu como você diz que não gosta das coisas?
Respondia firme: Ainda bem que posso dizer não!
"O melhor do almoço é o cafezinho", peguei dela isso.
"No começo é amor pra cá, amor pra lá, depois é "bingala" nas costas, repetia que uma vizinha turca, de sua infância, dizia.
Herdamos o amor pelo cinema dela.
Fez curso de cinema em Curitiba, amava Kurosawa, Fellini, Bergman, tinha revistas de Nouvelle Vague em francês- ela estudou francês, lembro de uma francesa magrinha, sempre de echarpe que dava aulas em casa. Chamava-se Madame Garfunkel- não sei como escrever.
A mãe criou em Cabo Frio um cineclube, ia à Niterói alugar filmes. Eu perdi essa temporada porque vivia no Rio e ia menos à Cabo Frio.
Depois transformou a sala da casa, que era enorme, numa galeria de arte, fez exposições de Fernando Bento, artista promissor na época, amigo de Carlos Scliar, Zé de Dome, Jean Guillaume, Gilberto Chateaubriand...Cabo Frio era uma pequena cidade onde viviam, ou frequentavam, muitos artistas, além da proximidade com Búzios, recém descoberta por Brigitte Bardot e tantos outros.
Um tempo privilegiado.
Enfim, D. Léa, como as minhas amigas se referem, era uma figura interessante, culta, que gostava de um bom papo e coisas boas.
Foi em paz.
Aqui estamos tranquilos, fiz das tripas coração, para lhe dar conforto e afeto.
Raduan, o netinho, saiu para o jardim para ver se achava a estrelinha bisavó.
Ah! Ela era encantada por ele. Dizia: É muito esperto, que gracinha. 
Ele gostava de interagir com ela, lhe dava beijinhos, mostrava brinquedos e livros, mas ela já não conseguia mais se concentrar.
Tenho certeza que minha mãe está bem. Viveu mais do que desejava, foi até os 97, dizia que estava cansada, que já tinha vivido muito.
"São Pedro esqueceu de mim".
Eu respondia:
"Deve ser um dos seus ex que não quer que você suba!" Ela adorava falar mal dos dois. Mas foi muito amada por eles, eu sei. Para um homem da geração deles não devia ser fácil uma esposa como D.Léa. Entendo os dois lados.
Vá em paz, mãe. Eu lhe disse, na véspera da morte, que estávamos todos bem, que ficasse tranquila. Era uma mãe protetora.
Amém!

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