domingo, junho 02, 2013

Como era charmoso o meu francês- arquivo 2005




Jean e Vânia


Outro dia disse aqui que não tinha certeza se alguma vez desejei realmente viver com alguém, por isso lembrei de Jean Guillaume- o francês que mudou a minha vida.


Jean escolheu Cabo Frio para viver a partir de 1961, eu o conheci no final da década de 60, “morava” com Vânia Penafiel, uma mulher requintadíssima, parecia uma boneca de porcelana. Vânia tinha três filhos, e eu era amiga de Consuelo, que era mais ou menos de minha idade. Nos reuníamos na casa dele antes de sairmos para a noite, que obrigatoriamente seria numa boate chamada “Monjolo”, ponto de encontro de todos.
Cabo Frio era um lindo balneário, sofisticado, havia acabado de ser descoberto por intelectuais, artistas do Rio de Janeiro.

Havia um hotel apenas, o "Colonial", portanto só os que possuíam casa de praia frequentavam, e os amigos desta tribo chic e bonita. 

Voltando ao Jean, eu ia para sua casa lá por onze da noite. Estavam sempre acabando de jantar, Jean, educado e sedutor, me oferecia um licor ou um sequinho, whisky sem gelo, que eu aceitava com prazer.

Havia sempre convidados, poderia ser Aluísio Magalhães, design conhecido que desenhou algumas de nossas cédulas, Tânia Sherr, atriz, Ionita Salles- ex Guinle, Sérgio Braga, César Thedin, Werneck, Paraíso, um arquiteto muito simpático etc. Muita gente famosa. Ali era uma espécie de 'consulado', sempre com estrangeiros, falavam francês. Eu me deliciava. Aluísio estava sempre por lá e cantava uma música que jamais esqueci, mas não saberia repetir, dizia: “A letra A quer dizer amor ardente... a letra B, beijo...” não sei mais, perguntei para um conhecido de Recife, mas não conhecia, é do folclore nordestino.

Eu, desde o dia em que vi Jean pela primeira vez, fiquei encantada, ele era da idade de meu pai- posso dizer que foi meu amor edípico- e foi o homem mais encantador e charmoso que conheci. Acho que nem Chico Buarque ganha, com sotaque francês ainda por cima!... Era um misto de Gary Cooper e Humphrey Bogard, pode? Pode. Era lindo como um Gary Cooper, olhos azuis, um metro e oitenta, por aí, e tinha um cinismo e um charme como o de Humphrey Bogard.

Irresistível. Mas ele não prestava atenção em moçoilas e eu naquela época era muito tímida, não conseguia aparecer, ficava quieta, não dizia nada, só ouvia- sempre gostei de observar-  daí a psicanálise como escolha profissional e que eu gosto tanto.

Eu o visitava quase todos os dias, ligava na hora que eu acordava- lá por onze da manhã, imaginem- e perguntava se ele estaria em casa mais tarde, "Oui, mon amour", ouvia do outro lado da linha.

Depois da praia, no final do dia, eu ia para lá- morávamos muito perto. Eu o observava pintar, não abria a boca, só ouvia, ele falava pouco, mas contava suas aventuras. Muito jovem fugiu de casa, fez o pai assinar um papel sem saber que o autorizava viajar. Foi para a África como marinheiro, pintava o navio e aquarelas para ganhar um dinheirinho a mais. Esteve na guerra na Indochina, fugiu de campos de refugiados, viveu na Côte d’Azur, foi amigo de pintores famosos, amou muitas mulheres- dizia que as chinesas são as melhores amantes do mundo. 

Vocês acham que eu ia abrir a boca e falar dos meus problemas, que aquela altura eram "gigantescos"- eu vivia deprimida-  para um homem que eu achava o máximo e que havia vivido tudo aquilo e me contava sorrindo? Meus problemas viravam 'umbigo puro'.

Com minha mudança para o Rio, eu passei a vê-lo nos fins de semana, todas as vezes que ia à Cabo Frio, bebia “pastisse” preparado pela fiel escudeira dele, a Anúsia.
Minha vida havia mudado muito, muitas coisas aconteciam, mas eu não contava ao Jean. 


Tinha amores e desamores, mas só falava da faculdade, livros, mas pouco. Nesta época eu já havia começado a desenhar, mas demorei muitos anos para tomar coragem e mostrar para ele. Um dia estavam Jean e Carlos Scliar juntos e mostrei os desenhos, eu, muito envergonhada. 

Eles disseram em coro que eu era a Jean Cocteau brasileira. Imagine... Eu já havia ouvido falar em Cocteau, minha mãe falava, mas não conhecia nada dele, sabia que era um intelectual, associava a Marais, cinema e mais nada. Quando vi, bem mais tarde um desenho dele, me assustei, é muito semelhante ao meu, traço contínuo, figuras de perfil...  

Scliar disse que eu poderia fazer ilustrações, fiz uma vez, apenas, para uma revista de psicanálise, uma caricatura de um psicanalista argentino, esqueci o nome. A revista sumiu- estava na estante do consultório. Fazia dos professores de psicanálise nas aulas, de brincadeira. Para Horus Vital Brasil eu entreguei uma. Ele gostou, depois comprou uns desenhos meus- cartões de Natal.


Eu penso que a vida me deu muitas oportunidades e eu as perdi por preguiça, timidez ou melancolia, sei lá. Nunca fui atrás de nada. Por isso digo que a gente deveria ter outra chance, como disse o Vittorio Gassman, viver primeiro com ensaio, como acontece no teatro, depois para valer.







Sabem qual é o meu cheiro preferido? De atelier. Adoro cheiro de tinta óleo, acrílico, qualquer cheiro que lembre aquele francês especial.

Jean era um artista completo, tudo transformava em arte, gostava mais dos quadros surrealistas e os guardava num quarto separado e só os 'escolhidos' tinham acesso. O atelier também só era frequentado pelos escolhidos. Era numa sala, da casa de trás que recebia a todos, muitos mineiros- Cabo Frio foi invadida por eles. Nas paredes havia uma quantidade de pequenos quadros, ele dizia brincando que era Anúsia quem os pintara, fazia para sobreviver, vendia facilmente, eram acessíveis a muitos.
Numa das paredes, havia um buraco para o "Nobody" passar- um vira lata muito simpático, que circulava com liberdade. 

Jean tinha três casas. Comprou o terreno até a rua de trás. Na da frente havia o quarto das crianças - Ricardo, Consuelo, Cláudia- e outro de casal- o quarto de Vânia; no centro do terreno, o atelier, onde dormia e recebia os amigos. Na porta de entrada havia uma placa pendurada onde dizia: “Não perturbe”. Abria a porta depois das cinco- “open house”. Ali havia um jardim coberto por conchas com um barco,- você poderia sonhar estar na praia-, e uma sala deliciosa envidraçada no atelier.

Mas por que lembrei de Jean? Porque dizia, e eu acredito, que se você quer viver uma paixão, conservar um amor, não more junto. Ele sempre manteve duas casas. Vânia chegou de surpresa com os três filhos e passou a viver em Cabo Frio com ele- eram namorados no Rio, onde moraram.

Depois dos trinta, Jean me descobriu. Dizia que eu era o “caso impossível” dele, nós nos amamos, mas nunca houve nada além de beijos rápidos na despedida, eu adorava quando ele me pegava forte e me puxava contra o corpo dele e me beijava, adorava aquele toque nos meus lábios. No atelier, antes, ficávamos "namorando", nos tocávamos muito, mas nada erótico em excesso, ele estava com mais de sessenta, chegando nos setenta, e eu sempre tinha uma outra “paixão”. Ele estava com muitos problemas de saúde, não gostava de falar sobre isto, sorria apenas, continuou bebendo whisky puro até o fim, e fumando. Dizia que dos prazeres, estes, eram os únicos restantes.

Jean morreu em 1985, depois da morte dele passei a não querer mais voltar à Cabo Frio, não havia mais razão para ir. A cidade perdeu completamente o charme com a morte de Jean, nunca será mais a mesma. Posso dizer o mesmo sobre Carlinhos, mas é outra história.

Ontem uma amiga me disse que eu vivi na França em outra encarnação, deve ser. Se existe...
PS: Conheci, há algum tempo, outro homem charmoso como Jean, Olivier Anquier, não por acaso francês. Mas, este, só conheço de longe.

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