Terça-feira, 28/4/2009
Chico Buarque e o Leite derramado
Jardel Dias Cavalcanti
Do Digestivo Cultural
"Aqui tudo é construção e já é ruína." (Caetano Veloso/ Gilberto Gil)
Acaba de ser lançado pela editora Companhia das Letras o melhor romance brasileiro do ano, se não for, creio eu, o melhor de décadas: Leite derramado (Companhia das Letras, 2009, 200 págs.), de Chico Buarque. E o primeiro comentário que o livro merece receber é o de que esta é uma obra escrita por alguém que domina completamente a língua portuguesa e a linguagem literária. O prazer de se ler um livro escrito por quem é mestre na própria língua já é um prazer de per si. Ainda mais num país com uma tradição de escritores que não entenderam que a literatura é feita, antes de tudo e mais do que tudo, de linguagem, e não apenas pela nobre causa dos temas sociais.
Aliás, vale aqui um parêntese: o que tem enfraquecido a arte brasileira durante tanto tempo é esse vício social que acomete nossos artistas de querer sobrepor a realidade ao ofício do ato criador da própria obra de arte, que se traduz nessa busca desesperada por explicar nossas misérias mais do que fazer um excelente trabalho artístico. Como dizia Aristóteles, na sua Poética, em arte "o impossível se deve preferir a um possível que não convença". A arte precisa de artistas e não de sociólogos.
As lições da Poética de Aristóteles e Horácio estão dentro da obra de Buarque: "a quem domina a linguagem e o assunto escolhido não faltará eloquência nem lúcida ordenação". Não que Chico Buarque se dobre ao fazer clássico como engessamento do ato criativo ou com um preceituário de soluções práticas, como condenou Paul Valéry em sua Première Leçon Du Cours de Poétique, dizendo que na poética clássica "o rigor se fez regra e exprimiu-se em fórmulas precisas". Ao contrário, no caso do nosso escritor o próprio domínio da linguagem é usado contra essa ideia lhe dando a liberdade de brincar com a estrutura do romance, fazendo e desfazendo o plano narrativo com maestria rara e sendo essa mesma desarticulação e articulação um recurso que revela o próprio ponto de vista interior do velho personagem sobre a história que conta.
Podemos pensar em Leite derramado a partir da ideia de que não se pode confundir reportagem com arte. Embora a narrativa de Chico Buarque perpasse a saga de uma família de ancestrais portugueses do tempo do Império aos nossos dias, alimentando-se do mundo real e da História, não o faz com métodos científicos ou documentais; ao contrário, cria um universo paralelo e até antagônico a esse mundo real. Na verdade, complica-o um pouco mais. E se este livro tem motivação política, aí reside sua força crítica. Ou, parafraseando Albert Camus, "em arte a crítica se instala na verdadeira criação, não apenas no comentário". E ainda, seguindo a ideia de T. W. Adorno, no seu famoso ensaio "Lírica e Sociedade", "nada que não esteja nas obras, na própria forma destas, legitima a decisão quanto ao seu conteúdo, o poetizado ele mesmo, representa socialmente".
Entrar por essa clave em Leite derramado é o que farei a seguir. O romance narra os pensamentos de um velho preso a uma cama de hospital que se dirige ora à sua filha, ora às enfermeiras, recontando o que seria sua história pessoal dentro do contexto da própria história brasileira, do Império aos nossos dias, em suas mudanças sociais, econômicas e comportamentais.
À primeira vista parece fácil perceber isso, mas quem narra é a memória de um velho perturbado por um passado complicado, sendo essa mesma memória dominada por emoções que deságuam a todo momento sobre sua cabeça na forma de desafetos, traições, taras e, além do mais, a realidade próxima da morte. Então, o reino do narrador é o próprio reino da arte, aquela arte condenada por Platão como imprevisível, paradoxal, dominada pelos sentidos, por sentimentos mórbidos, fantasias ilusionistas, própria para loucos e videntes.
Alegoricamente, podemos pensar que uma história do Brasil só poderia ser escrita nesses termos, os termos da própria realidade brasileira, que é delirante, perversa, desconstrutiva, insólita, tingida por contradições, como a memória do personagem que a narra. Nesse ponto Chico dá uma lição aos historiadores pragmáticos e racionalistas, oferecendo a possibilidade de se tentar entender uma realidade delirante a partir do próprio delírio.
A decadência da família do narrador e a própria decadência do país, que vai da tradição assentada na estrutura do poder imperial até o poder atual, com o neto traficante de drogas que consome com seu avô algumas carreiras de coca, retraçam o percurso de uma sociedade perversa em todos os sentidos, da escravidão e seu correlato e consequente racismo histórico até o abuso de poder e total falta de pudor (o velho olhando e desejando a bunda da namorada do neto) em usar este poder.
"Estou nesse hospital infecto." Esta frase do narrador talvez traduza o sentido que o próprio personagem dá ao Brasil e sua história. Espécie de paciente terminal, o Brasil de Leite derramado é pessimista. O próprio título do livro nos dá essa ideia de algo que serve para nos nutrir mas que perdemos. Um Brasil que poderia ter sido, mas não foi e pelo visto nunca será. E adianta chorar sobre o leite derramado?
E é desarticulando a narrativa que percebemos de fato isso. Nos tornamos incapazes de organizarmos os sentidos atribuídos aos personagens, pois não sabemos se são reais ou se estamos sendo induzidos por uma memória perversa, tão perversa quanto a realidade que a criou ou do qual o personagem participou.
Este mérito do romance de Chico Buarque se sobrepõe a todos. Ele é capaz de provocar a emoção estética, ou seja, o arrebatamento que nos possibilita navegar em águas turvas, ter o sentido da impossibilidade de diferenciar real e imaginário, possibilitando-nos pensar ao mesmo tempo por ordem de um discurso histórico e outro fantasioso sem saber bem qual é qual. Lugar de nossa particularidade nacional esta de sermos uma mistura irreconciliável entre desejo irrefreável (de foder e poder?) e vontade de criar a civilização democrática? Sermos o lugar da riqueza e da violência que se apodera dessa riqueza e a transforma em opressão econômica, racismo, abuso de poder e na consequente descrença social num projeto de nação a ser construída democrática e historicamente por todos?
Perversão psíquica e perversão histórico-social se confundem na narrativa. Não sabemos bem quem domina quem, quem gera quem e o quanto isso é ao mesmo tempo fabuloso (no duplo sentido da palavra) e destruidor da ideia de uma possibilidade de se estabelecer qualquer realidade sob controle.
As entrelinhas são muitas, os ditos e não-ditos é que falam, o embaralhamento é a corda do trapezista sobre a qual pendemos, seja como leitores ou como partícipes da suposta "realidade" brasileira. Chico nos devolve a realidade do nosso país com inteligência histórica visível, sem pragmatismos políticos ralos, nos levando para dentro da geléia-geral traçada no próprio interior do romance enquanto linguagem.
"Quando você compilar minhas memórias vai ficar tudo desalinhavado, sem pé nem cabeça. Vai parecer coisa de maluco", diz o personagem em certa passagem do livro. E o nosso país, não parece coisa de maluco? Eu, por mim, diria sobre o romance, seguindo Platão, que não só é coisa de maluco, mas coisa de vidente. É o que Leite derramado é.
Portanto, nem tudo nesse país se perdeu, do caos de nossa miséria histórica surge a riqueza brilhante que é um escritor de altíssima qualidade, que além de já nos presentear com sua música genial, nos brinda agora com a maturidade literária que sempre sonhamos.
Como nota final chamo a atenção para a orelha do livro, sensível e inteligentemente feita por Leyla Perrone-Moisés, ultimamente a mais sofisticada crítica literária deste país.
Para ir além
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 28/4/2009
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