Com a pulga atrás da orelha
Estudiosos alemães contestam automutilação de Van Gogh e defendem tese de que Gauguin teria cortado a orelha do pintor
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EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL
No dia 30 de dezembro de 1888, o jornal "Forum Républicain", de Arles, na França, noticiava que, no domingo anterior, o pintor holandês Vincent van Gogh (1853-1890) havia ido a uma "casa de tolerância" da cidade e procurado por uma prostituta de nome Rachel, a quem teria entregue sua orelha esquerda, dizendo: "Guarde este objeto com cuidado".
Van Gogh teria cortado a parte inferior do lóbulo esquerdo, com uma lâmina de barbear, após brigar com o colega francês Paul Gauguin (1848-1903), que ameaçava partir depois de dois meses de parceria artística e convivência conflituosas.
Relatada por Gauguin em inquérito iniciado na manhã seguinte, e em suas memórias "Antes e Depois", a versão de automutilação foi recentemente rebatida pelos estudiosos alemães Hans Kaufmann e Rita Wildegans no livro "Van Goghs Ohr: Paul Gauguin und der Pakt des Schweigens" (a orelha de Van Gogh: Paul Gauguin e o pacto do silêncio), ainda sem previsão de edição brasileira.
Kaufmann e Wildegans sustentam que Gauguin, "espadachim extraordinário", teria cortado com uma espada a orelha de Van Gogh quando esse, num acesso, partira para cima dele. O ataque não seria consequência da "loucura" ou epilepsia atribuídas ao pintor, mas sim da porfíria, que tem transtornos mentais entre os sintomas.
Os autores começaram sua pesquisa em 1996, após verem o quadro "Girassóis sobre uma Poltrona" (1901). "O tema da obra, em especial o girassol "morto" ao fundo, com um olho, nos pareceu conter uma mensagem secreta. Concluímos que, com ele, Gauguin representa o amigo morto [Van Gogh], que o observa do além. E o olho simboliza o peso na consciência de Gauguin", diz Kaufmann à Folha.
Outra "pista" teria sido uma carta de Van Gogh ao irmão Theo, de 17 de janeiro de 1889. Nela, o pintor fala do "impulso animal" de Gauguin e diz que enviaria logo a máscara e luvas de esgrima que o ex-parceiro pedira de volta, com a esperança de que ele "nunca venha a usar armas mais sérias".
Para Louis van Tilborgh, pesquisador do Museu Van Gogh de Amsterdã, com quem Kaufmann debateu há uma semana na Holanda, o livro é honesto, mas especulativo. "Os autores não têm provas suficientes para confirmar o que acham que Gauguin fez a Van Gogh", diz Van Tilborgh. "Mergulham em todo o tipo de detalhes que consideram importantes para sua teoria. Mas, na maior parte do tempo, a interpretação poderia ser a já conhecida."
A hipótese do "código Gauguin" no quadro também é criticada: "Pintar girassóis, retratando-os com olhos, é algo que Gauguin já fazia antes mesmo de eles brigarem. Não se pode provar nada com esse quadro".
Pacto
Para Kaufmann, o "crime" cometido por Gauguin não teria vindo à tona por conta de um pacto de silêncio, evidenciado em declaração de Van Gogh, contida em relato de Gauguin: "Você está silente, e assim eu também ficarei".
Gauguin, diz Kaufmann, teria se calado para evitar a prisão. E Van Gogh, sentindo-se cúmplice, não queria que o amigo fosse preso e esperava retomar a parceria. "Por trás disso estaria ainda, possivelmente, a admiração homoerótica de Van Gogh por Gauguin."
Para Van Tilborgh, qualquer que seja a explicação para a orelha cortada de Van Gogh, o incidente reforçou um mito negativo. "Tornou-se um problema para ele, alguém com novas propostas estéticas, cujo trabalho poderia ser apresentado, especialmente após o incidente, como a arte de um lunático. E mais: isso encobria seus verdadeiros problemas de saúde."
Kaufmann defende que Van Gogh passou a ser visto como um "perigo potencial para a sociedade" depois da "propaganda" negativa de Gauguin. "Ele foi internado num hospital a pedido de vizinhos. E sua posterior entrada, mais ou menos voluntária, num asilo, já foi um sinal de sua resignação. E um sinal para o suicídio que ele cometeria 19 meses depois."
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