segunda-feira, setembro 10, 2007

Conto de César

Djanira*



Joaninha

Augusto César Proença



Foi grande a excitação lá em casa, naquela véspera de São João, quando Joaninha telefonou avisando que estava na cidade e ia aparecer pra fazer uma visitinha.

__ Ela está outra vez na cidade? – perguntou a minha mãe, sem acreditar, costurando a roupa caipira.

__ Chegou ontem, mãe, e falou que vem nos visitar e preparar o quentão pra festa do clube.



Joaninha era amiga da minha mãe. Antes de dar aquele escândalo, que a cidade inteira comentou, costumava aparecer sempre na época das festas de São João, ia conversar fiado, fazer o quentão no nosso fogão de lenha, apanhar as folhas dos coqueiros do quintal pra ornamentar o seu “ arraiá.”

A campainha tocava e a gente já sabia que ela ia entrar toda agitada, se requebrando no vestido justo, a cabeça enrolada num pano estampado, sorridente e assanhada que só ela.

O “Arraiá de Nhá Joaninha” era o mais afamado da cidade. Fechava a rua, ficava apinhado de gente. Falavam que os homens iam lá só pra ver ela dançar a quadrilha, rodando o vestido caipira meio curto, mostrando o vão das coxas grossas, até uma nesga da calcinha branca.

Chamava a atenção dos homens quando passava na rua: era gostosona nos seus 30 anos, mulherão cheio de raça, segundo seu Onofre da farmácia. Um morenaço, um estouro, pedaço de pecado, no dizer do Otaviano do Armazém Bom-Sossego.

Todos gostavam de ver a alegria, a vivacidade dela quando descia a ladeira do porto, bem na frente do rancho, pulando ao som da sanfona, cantando: “Deus te salve João Batista sagrado, o teu nascimento nos tem alegrado...”

Todos gostavam de ver a excitação de Joaninha borrifando água no andor, dando banho no santo, metade das pernas dentro do rio, o vestido molhadinho, bem .coladinho nas curvas do corpo, deixando aparecer as dobras dos peitos que balançavam e às vezes saltavam pra fora quando ela erguia os braços, olhava o céu com olhar de louca, e gritava contaminada de prazer: “Viva São João! Viva São João!...”


Mas Joaninha tinha um segredo dentro dela. Ninguém entendia aquela tristeza que ela guardava para o resto do ano. Um segredo de dor, de paixão, de sofrimento mudo, sei lá.... A alegria que emendava uma na outra, o assanhamento, tudo isso, tinha tempo certo. Só durante as festas de São João ficava assim excitada e feliz. O resto do ano passava tristonha, curtindo uma esquisitice arrastada, loucura silenciosa, que dava dó de ver. Quase não saía de casa. Não falava com ninguém. Não cumprimentava ninguém. E se cumprimentava era com um sorriso seco especando o canto da boca.

__ Ela é meio variada – disse, um dia, o André, filho do seu Onofre da farmácia --. Tá sempre comprando remédio pros nervos.

Muita gente achava que Joaninha ficava assim naquele estado de mágoa com a vida por causa do marido, tal de seu Nicanor, um coroa cheio da grana, falavam que era traficante de cocaína, muito mais velho do que ela e não dava conta do recado. E a única coisa que punha perigo na sua arrogância eram certos trejeitos e uma nota falsa na voz, o que dava a impressão para muitos de ser também veado.

“Aposto que foi loucura que bateu nela naquele domingo” _ disse dona Antonha Ovo de Piririta.“ Quá, falta de homem, isso sim” _ afirmou seu Otaviano do armazém. Já Anita do Rego Raso achou que foi por causa do calor, conhecia gente que tinha enlouquecido de uma vezada só.

Durante o tempo que passou fora da cidade Joaninha permaneceu na lembrança de todos. As senhoras se lembravam dela com certo pudor, sentadas na porta, abafando risinhos irônicos e sacudidos por detrás de abanicos redondos, aos cochichos. Os senhores se lembravam dela na porta do café, debaixo de árvores sombrias ou tomando a cerveja das cinco no bar do Paulinho e caíam na gargalhada, pensando nos gestos, nas posições que ela fez pra exibir aquilo que não devia. Os rapazes se lembravam dela rolando na cama, no calor das bronhas, sem poder dormir, imaginando a cena daquela tarde de domingo.

Quem não viu queria saber, quem viu saiu aumentando e o caso de Joaninha ganhou relevância, não ficou só na lembrança não, passou também pra boca do povo, foi o prato feito das conversas dos namorados, dos deboches nas mesas dos bordéis, dos cochichos nos bailes de salão, até o bispo quis saber se foi verdade ou não.

Alguém afirmou: ela nunca ia fazer aquilo não tivesse tomada por algum demônio. E contou estórias de freiras lá de um convento francês, que de tanto demônio no corpo se deitavam nos montes de pedras, erguiam os hábitos, abriam as pernas e, tesudas, chamavam os plantadores de hortaliças: “Venham! venham! venham todos!”.

Conforme o seu Odorico (ele morava ali em frente da casa dela e viu o pampeirão que ela fez quando saiu correndo atrás do marido com a faca de cozinha na mão, gritando feito maluca) disse que precisou mais de três pra segurar Joaninha e derrubá-la no chão e que ela babava, cuspia, chutava, esfregava o corpo no asfalto quente, inquieta e fogosa. E que estava sem calcinha e cada vez que suspendia as pernas pra chutar alguém aparecia a intimidade daquela gruta guardada no fundo de duas coxas lisas e morenas. Tipo fenda beiçuda e rosada, úmida, solitária, coroada de cabelos retorcidos, que perdia toda a timidez, toda a sisudez, todo o pudor, quando se escancarava e se revelava como uma boca que parecia também querer gritar o seu inconsciente grito de liberdade.

_ Pára com isso, Joaninha, onde já se viu ?..._ Ê-ah!... agora o quê-que é isso? _ as vizinhas falavam, com piedade no olhar e espanto nas palavras.

A roda foi crescendo ao redor dela. Apareceu gente de tudo que era canto.Todos queriam ver o que tinha acontecido com a Joaninha, coitada, a mulher mais cobiçada da cidade, a mais linda, estava ali expondo o segredo da sua loucura aos olhos de todo mundo. Carros freavam bruscamente, bicicletas paravam, pessoas indagavam: o quê-que foi?... o quê-que deu nela?... E Joaninha foi motivo também de risada, de deboche, de desrespeito da garotada: Chega pra lá, cara, quero vê também... caramba! que lapa, meu irmão!


Só sei dizer que depois desse escândalo, Joaninha e seu Nicanor sumiram do mapa. As notícias que chegavam deles eram desencontradas. Diziam que ele tinha sido preso em Campinas; que os dois se separaram e ela estava livre e desimpedida; falaram até que tinha morrido num ato de desespero, com uma dose reforçada de veneno mas, a verdade, é que ela estava outra vez na cidade: vivinha da silva! E quando tocou a campainha, eu fui atender e disse: Mãe, ela já tá aqui esperando...

Ainda tomada de surpresa, forçando um sorriso sem graça, mamãe foi recebê-la na porta. Acabou se desculpando, estava apressada, pediu que eu a atendesse, tinha que terminar a roupa caipira. Voltou logo para o quarto.

E Joaninha entrou sorridente e carnuda dentro do vestido justo. Carregava um cheiro de lavanda no corpo, usava um turbante na cabeça e sandálias de couro cru em cima de meias vermelhas. Estava pouquinho mais gorda, até mais gostosa. Parecia não guardar nenhuma vergonha, como se nada tivesse acontecido naquela tarde de domingo.

Eu tinha convidado uns amigos pra jogar bola no quintal de casa e então ajudamos Joaninha a botar a lenha no fogão, a pegar a panela grandona, a escolher a colher de pau... Depois a gente saiu da cozinha e ficou do lado de fora da janela, olhando Joaninha fazer o quentão. A fumaça aumentou, esquentou o ambiente e ela retirou o casaquinho de lã. As costas apareceram amorenadas naquele tomara-que-caia. As pernas ainda eram grossas, o vestido, muito justo, entrava pelo vão da bunda e a gente via o risco da calcinha dela, bem apertada.

Estava satisfeita da vida; cantarolava: “Se São João soubesse que hoje era seu dia, descia do céu à terra com prazer e alegria, descia do céu à terra com prazer e alegria...” Ela mexia e cantarolava... cantarolava e mexia... Parece que fazia isso de sacanagem.

E me lembro então que foi aí que a gente começou a brincadeira. O Juca fechou os olhos e imaginou que tirava o vestido dela; o Amaro, que deslizava a mão naquela bundona; o André, que desabotoava o sutiã e até beliscava o peitaço; e eu, instigado pela quentura da cozinha, pelo cheiro adocicado do cravo, da canela, da alfazema que vinha do corpo de Joaninha, também fechei os olhos e, bem devagar, fui baixando a calcinha dela, fui baixando... baixando...e de cada um de nós brotou um gemido fundo. Um gemido de gozo relaxado, descompassado, brincalhão, enfeitiçado de meninice e encantamento, que foi se misturar com o barulho da máquina de costura da mãe, apressada, pois já era tarde, logo mais tinha quadrilha.


(Laura)*Djanira foi uma pintora primitiva muito especial, vão ler e ver aqui.

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