quarta-feira, agosto 08, 2007
Hoje na 'Folha': Marcelo Coelho e a elite brasileira
A festa do ovo podre
Marcelo Coelho
O governo Lula revolta mais por seu "elitismo" do que pelas verbas dadas ao Bolsa Família
JURO QUE não queria ser moralista. Essa coisa de lamentar a decadência dos costumes nunca adiantou muito. Mas é difícil não reagir com repugnância ao vídeo que circula no YouTube, mostrando grã-finos num embalo total, não sei se em Ipanema ou no Leblon.
A diversão da turma, aboletada no terraço de um apartamento à beira-mar, é atirar ovos nas pessoas e carros que passam pela rua. "Boninho", diretor do programa "Big Brother Brasil", dá a receita de como apodrecê-los: a tecnologia exige algum treino e paciência.
Ele injeta éter no ovo, espera três dias, e só então o produto adquire condições ideais para ser arremessado. Boninho diz que já acertou "muita vagabunda em São Paulo" com os tais ovos.
Poderia incluí-los no próprio "Big Brother", se é que isso já não faz parte do repertório habitual de baixarias do programa. No YouTube, há cenas de arremesso ao vivo. Senhoras de idade respeitável também são entrevistadas, dizendo-se adeptas dessa prática.
Narcisa Tamborindeguy declara que não joga ovos apenas; por vezes, atira flores de seu apartamento. O que mostra que, afinal, não devemos perder as esperanças na delicadeza humana.
Claro que não é a mesma coisa que espancar empregadas domésticas, como também acontece, mas a alegria desbragada dos entrevistados, a completa certeza de que são donos do mundo, lá das alturas de um prédio de luxo, causa repulsa imediata.
Fui então ler os comentários escritos pelos visitantes do site. Conseguem ser mais horríveis do que as cenas do filminho. Muitos insistem, aos palavrões, na circunstância de que os jogadores de ovos são cariocas. Como se elites paulistas, amazonenses, baianas ou gaúchas fossem melhores.
De resto, o termo "elites" deveria passar por um bom período de férias, antes de voltar a ser utilizado. No discurso governista, os que reclamam da crise aérea ou de qualquer outra pertencem às "elites", que são, por natureza, "conservadoras" e "golpistas".
Oposição não é golpismo, e aquilo que hoje em dia se qualifica como "moralismo pequeno-burguês" foi um dos motores ideológicos do PT durante décadas. Falo isso, mas logo tenho de engolir também a notícia de que, numa passeata antilulista em São Paulo, houve quem gritasse "Acorda, milico!" ao passar na frente do Comando Militar do Sudeste.
Tento não desanimar. Acho que há alguns paradoxos na situação. É banal dizer que o país está dividido. A oposição ao governo se torna mais inconformada uma vez que a popularidade inalterada de Lula nas pesquisas aparece como uma surpresa aberrante para quem, atrás das guaritas, tem contato mínimo com o "povão".
Ah, sim, são as "elites brancas"...
Mas justamente aí o discurso lulista se atrapalha. Pois quando uma diretora da Anac é flagrada fumando charuto numa festa em plena crise aérea, quando uma ministra bem-vestida recomenda que o passageiro "relaxe e goze", ou quando um assessor de gravata faz um solene "top, top" no seu gabinete, o gestual, a pose e a soberba dessas atitudes nada mais são do que exemplos consumados do comportamento das "elites".
O governo Lula revolta mais por seu "elitismo" do que pelas verbas que destina ao Bolsa Família.
Do mesmo modo que paulistas e cariocas se engalfinham numa rivalidade deprimente, tucanos e petistas se acusam dos defeitos que, em sua esmagadora maioria, compartilham com orgiástica efusão.
E quem é que, na intimidade do escritório ou no tumulto de uma redação, já não fez fora de hora os gestos grosseiros de Marco Aurélio Garcia? Só espero que ninguém do governo jogue ovos pela janela. Verdade que há coisas piores a fazer, nem sempre fáceis de registrar em câmeras de vídeo.
Esse é outro complicador da situação. O todo e o pormenor, o detalhe debochado e o absurdo estrutural perdem as suas dimensões reais, à medida que uma foto de celular ou uma câmera secreta revelam, a cada dia, uma nova rodada de escândalos de conduta.
Não que não sejam revoltantes e significativos do quadro mais amplo de deboche público e privado. Mas consome-se tudo isso como pornografia, num misto de excitação, cumplicidade, repúdio e desejo. Estamos, quem sabe, exorcizando nossos próprios fantasmas. O cidadão reage ao vídeo do Boninho escrevendo uma série de podridões. Há quem se olhe no espelho e não se reconheça.
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