sábado, maio 19, 2007

Conto de César




















Este é um belo conto do meu amigo César, amigo de uma vida toda, de quem me perdi muitos anos, mas nos reencontramos via internet. Viva a internet!!!

O gato da marquise

Augusto César Proença


Entrou esbaforido na sala e foi direto para a janela. Aí afrouxou a gravata, desabotoou o colarinho e olhou para ver se estava sendo observado pelas pessoas que liam as revistinhas. A senhora de cabelo oxigenado lia a revistinha de pernas cruzadas, balançando a de cima como se chutasse alguma coisa; o senhor gordo lia a revistinha tamborilando os dedos na cabeça como se tocasse piano; uma outra senhora lia a revistinha aos pulos no sofá como se estivesse num trem bem sacolejante.
Todos estavam entretidos com as suas revistinhas que nem notaram o homem de paletó preto entrar apressado na sala: “Ótimo!” – pensou ele, debruçando-se no parapeito da janela, olhando os carros, os ônibus, as gentes que cruzavam lá embaixo, na rua, tentando se livrar da enorme tensão que o sufocava naquele momento, quando viu o gato. Era um gato branco, tranqüilo, que passeava na marquise do edifício, aproveitando o calor o calor da tarde.
“Meu Deus! – pensou o homem de paletó preto – como pode ainda existir um ser tranqüilo na face desta terra?”.
De vez em quando o gato parava, arqueava o dorso, lambia-se, coçava-se, espreguiçava-se, e continuava a circular pela marquise, indo-voltando, serenamente, mordiscando ossinhos de galinha, brincando com as caixinhas de fósforos, sem se importar com o barulho da rua,
“Como é que pode?... Um barulhão infernal desses e esse gato nem liga?...
De repente veio à cabeça do homem de paletó preto a certeza de que os irracionais eram mais felizes e mais equilibrados que os racionais. Não precisavam de divãs de psicanalistas, não se preocupavam com coisinhas inúteis, não careciam de confessar suas mazelas cruéis, seus tormentos burgueses, suas loucuras, pecados safados, não tinham os vícios e nem a imbecilidade dos humanos. Encheu os pulmões de ar como se quisesse engolir a tarde e sentiu uma enorme vontade de rir e riu, abertamente, ruidosamente daquelas pessoas que estavam sentadas na sala. Virou-se, olhou para elas e gritou:
__ Ainda não estamos prontos!
As pessoas que liam as revistinhas se entreolharam, arregalaram os olhos, rangeram os dentes, abriram as bocas e, em uníssono, repetiram: “Ainda não estamos prontos!
Então o homem de paletó preto, voltou sua atenção ao gato e o animalzinho foi-lhe dando raiva. Asco. Sobretudo inveja, sim, uma grande inveja Daquele ser de rabo erguido que passeava desafiando a todos com os seus passos indiferentes.
Para contrariá-lo o homem começou a fazer um barulhinho com os beiços, mansamente, assim da maneira que se chama gato. A princípio baixinho, depois mais alto, cada vez mais alto, depois bateu palmas, assobiou -- nada do gato olhar.
“Seria surdo?...”
Nem dava bola, continuava arrogante no seu passeio a farejar coisinhas que se encontravam pela frente.
“O que esse bicho tá pensando que é?...”
Num gesto brusco, possivelmente irrefletido, o homem pegou uma caneta esferográfica do bolsinho do paletó e atirou-a com toda a força na direção do gato, mas errou a pontaria. Em seguida puxou a carteira, retirou dela tudo o que tinha dentro, inclusive o dinheiro, e arremessou-a violentamente contra o animal que, despreocupado, continuou a passear mostrando ser um gato feliz, diferente dos outros, um gato que tinha paz, coisa que ele, o homem de paletó preto, havia perdido há muito.
Virou-se outra vez para as pessoas sentadas na sala e gritou:
__ Farsantes! Fingidos! Hipócritas! Alienados...isso sim, é o que vocês são.
As pessoas que liam as revistinhas se entreolharam, arregalaram os olhos, rangeram os dentes, abriram a boca e, em uníssono, repetiram “Alienados... isso sim é o que vocês são”.
Aí se lembrou que trazia no bolso do paletó preto umas moedinhas e foi jogando, jogando todas elas em cima do gato, mas errando a pontaria. E tomado por um nervosismo incontrolável, por uma exasperação fora do comum, botou a metade do corpo para fora da janela e começou a berrar, aberrar, a gesticular, tão exageradamente, que as pessoas que passavam lá embaixo, na rua, pararam e ficaram olhando.
__ É um suicida!
__ Cadê? ...
__ Lá em cima, naquela janela!
__ Meu Deus, vai pular!
__ O cara é louco, cuidado!

Roxo de raiva, o homem de paletó preto esmurrava o parapeito da janela, o corpo cada vez mais para fora, xingava, assobiava, tossia, cuspia no gato, e quanto mais errava a direção das moedas, mais esbravejava..
A roda de curiosos foi crescendo. Logo a rua estava entupida de pessoas que se acotovelavam olhando para cima. Carros buzinavam, ônibus se enviesavam no meio da rua, atravancando o trânsito, motoristas botavam a cara para fora e xingavam.
Apareceu a polícia. Muito mal informada, sem saber o que acontecia, esparramou jatos de água tentando dissolver a multidão e desengarrafar o trânsito.
Houve gritos, empurrões, tropeções, correrias. Cacetadas. Alguém quis explicar:
“É um suicida, olha lá, ele vai se jogar agora!”
Mas a polícia nem escutava. A ordem era para baixar o pau acabar com qualquer manifestação de rua, mesmo usando a violência.

Naquele momento tumultuado, do céu começou a descer uma cor alaranjada, linda, que se espalhava envolvendo o final da tarde, abafada. E o homem de paletó preto foi parando de berrar, a voz desaparecendo da garganta irritada, foi parando... as mãos segurando a cabeça, exausto, zonzo, o rosto gelado, as pernas bambas: “meu Deus! o que será que havia acontecido?...”.
Fechou os olhos, respirou fundo, ia limpar o suor da testa quando escutou o barulho da queda. Sim, de um baque, um baque pesado, que o fez abrir os olhos de repente e procurar o gato da marquise, mas não viu mais o bichinho por ali. Apenas um corpo estava esbagaçado lá embaixo, um corpo que com certeza batera contra a marquise e rolara para o asfalto. As pessoas curiosas agora formavam um círculo silencioso em volta dele. Velas apareceram para iluminá-lo, folhas de jornais amarrotadas chegavam, apressadas, para cobrir a face ensangüentada do coitado: alguém trouxe flores e jogou em cima do corpo.
O homem ficou olhando um pouco aquele corpo e um pensamento ruim veio-lhe à cabeça, mas ele o repudiou e o afastou para longe. Talvez nada daquilo fosse real... talvez tudo não passasse de uma ilusão e fosse uma invenção daquela tarde abafada e tensa... talvez a extensão de si próprio estivesse lá embaixo: um ser aniquilado.
Lembrou-se das pessoas que liam as revistinhas, virou-se, ninguém mais na sala. Então olhou outra vez o corpo lá embaixo e foi se afastando da janela para se sentar num daqueles sofás frios e imparciais dos consultórios médicos, esperar a sua hora. Pegou uma revista, folheou-a, ia começar a ler, mas, carregado de uma coisa inexplicável, de um delicioso torpor, de uma sensação oca, reconfortante, até então nunca sentida, deixou que o seu corpo balofo aos poucos fosse se esvaziando, esvaziando-se lentamente num sopro suave, prazeroso, mas excessivamente fétido, para se tornar uma coisa de nada, um paletozinho preto, insignificante, jogado num canto de um simples sofá branco.

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