sexta-feira, novembro 10, 2006

Menino do lixão. Conto de Augusto César.
















O MENINO DO LIXÃO


Augusto César Proença.

Joga um punhado de pedacinhos de alumínio para cima e fica encantado com a chuva prateada que cai sobre a sua cabeça.
Todos os dias, enquanto a mãe cata as coisas que prestam para vender, o filho brinca por ali com os outros meninos, olhos alumiados de sol, mãos espantando os insetos que lhe dão coceira no corpo e botam contrariedade no rosto afogueado.
Esse é o mundo do menino. Um mundo de lixo jogado a céu aberto, mas que no seu imaginário se apresenta cheio de surpresas divertidas, de descobertas inusitadas, de coisas atraentes que o levam muitas vezes ao encantamento.
Como é bom rolar livremente sobre montes de papéis rasgados e panos bolorentos. Brincar de esconder dentro de caixas de papelão , bater latinhas amassadas uma contra as outras para afugentar as moscas e os mosquitos que o incomodam. Sim, o menino gosta do gosto adocicado da terra fofa povoada de minhocas, de sentir cheiros diferentes, ver gatos arrepiados de fome, sapos saltando de repente do fundo dos ferros enferrujados, bichos que habitam esse mundo de contemplação.
O lixão desperta no menino muita curiosidade, um prazer quase lúdico quando cata os besouros e os coloca num saquinho plástico ou encontra, no meio de tantos brinquedos mutilados, um carrinho com todas as rodas, uma espingarda com gatilho, uma metralhadora que ainda consegue dar tiros.
Então remexe em tudo. Em tudo presta atenção, pega, cheira, prova, joga para o lado e pega outra coisa qualquer. Vibra com os caminhões barulhentos que chegam levantando as carrocerias e despejando mais e mais brinquedos que a mãe não pode comprar para ele.
Esse é o mundo do menino. Um mundo sujo de porcarias desprezadas, de misérias que, diante dos seus olhos, transformam-se em cores sobre as quais o sol bate, brilha e fabrica a interessante e encantada chuva prateada.
Os dias bruscos, cinzentos, trazem os urubus que pousam, aos pulos, nos amontoados, as asas abertas, os bicos ameaçadores para disputar com eles, os meninos, o resto das mesas dos aniversários.
Sabe que desse mundo a mãe retira o que presta para homem bigodudo comprar. Sabe que dele vem o arroz, o feijão, o pão, o leite: as coisas da sobrevivência. Mas o menino não sabe que das entranhas desse mundo inúmeros inimigos atuam para acabar mais cedo com a sua vida de criança. Não sabe que centenas e centenas de meninos, como ele, brincam em lixões espalhados por este Brasil afora. Não sabe de tantas coisas e talvez nem deseja saber. Porque no seu pequeno coração, longe de guardar uma revolta, abriga uma inocente indiferença, uma ilusão gostosa, incapaz de compreender a imagem real da desgraçada e injusta humanidade.

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