Para quem eu escrevo ? E vocês?
São Paulo, sábado, 14 de outubro de 2006
Em artigo, Nobel diz que escritores escrevem para "leitor ideal, para as pessoas que amam, para eles mesmos ou para ninguém"
"Quer estejamos na Turquia ou não, a pergunta vem sempre acompanhada de um sorriso suspicaz e desdenhoso"
ORHAN PAMUK
Para quem você escreve?
Pelos últimos 30 anos -desde que comecei a escrever-, é essa a pergunta que tenho ouvido com mais freqüência de jornalistas e leitores. Os motivos para que a façam dependem do local e da época, e as coisas que desejam saber também. Mas todos usam o mesmo tom de voz suspeitoso, com certa dose de desdém.
Nos anos 70, quando decidi me tornar romancista, a questão refletia opinião comum entre os filisteus: arte e literatura eram luxos desnecessários em um país pobre e não-ocidental, onde problemas anteriores à modernidade se faziam sentir.
Havia também a sugestão de que alguém "tão culto e educado" poderia servir melhor ao país como médico no combate a epidemias ou como engenheiro, construindo pontes. O filósofo francês Jean-Paul Sartre emprestou respeitabilidade a esse tipo de opinião ao declarar, nos anos 70, que não se dedicaria a escrever romances se fosse um intelectual de Biafra.
Em anos posteriores, as pessoas que me perguntavam para quem escrevo estavam mais interessadas em descobrir que parte da sociedade eu esperava que viesse a admirar meu trabalho. Sabia que a pergunta era capciosa porque, se não respondesse que "escrevo para os pobres e oprimidos!", seria acusado de proteger interesses dos grandes proprietários de terras e da burguesia da Turquia.
Isso a despeito do fato de que qualquer escritor ingênuo a ponto de alegar que escrevia para os camponeses e operários seria lembrado de que era pouco provável que viesse a ser lido por pessoas que mal podiam ser consideradas alfabetizadas.
Passados 30 anos, ouço essa pergunta com freqüência ainda maior. A questão agora tem mais a ver com o fato de que meus romances são hoje traduzidos para mais de 40 idiomas.
Especialmente nos dez últimos anos, os questionadores parecem preocupados com a possibilidade de que eu os interprete erroneamente, de modo que se sentem inclinados a acrescentar: "O senhor escreve em turco, o que quer dizer que escreve só para os turcos, ou agora também tem em mente a audiência mais ampla que pode atingir com as traduções?"
Quer estejamos conversando na Turquia, quer fora dela, a pergunta vem sempre acompanhada de um sorriso suspicaz e desdenhoso, o que me leva a concluir que, se eu quiser garantir a autenticidade de meu trabalho, cabe-me responder: "Escrevo só para os turcos".
Gostos e idéias
A ascensão do romance como forma de arte coincidiu com a ascensão do Estado-nação. Quando os grandes romances do século 19 estavam sendo escritos, a arte do romance era uma arte nacional. Balzac, Dickens, Dostoiévski e Tolstói escreviam à classe média emergente em seus países, capaz de reconhecer nos livros cada cidade, rua, casa, sala e cadeira; os leitores compartilhavam nos livros de seus mesmos gostos e discutiam as mesmas idéias.
No século 19, os romances eram publicados nos cadernos de cultura dos jornais, porque seus autores falavam a uma nação. No fim do século 19, ler e escrever romances era participar de discussão nacional, fechada aos que estavam de fora.
Hoje, escrever romance possui significado completamente diferente, e o mesmo se aplica à leitura de romances literários. Os leitores de hoje aguardam um livro de García Márquez, J. M. Coetzee ou Paul Auster assim como seus predecessores esperavam por um romance de Dickens como a notícia mais recente. O quadro mundial de leitores de romances desse tipo é muito maior que o número de leitores que esses livros conquistam nos países de origem.
Os escritores escrevem para um leitor ideal, para as pessoas que amam, para eles mesmos ou para ninguém. Tudo isso é verdade. Mas é igualmente verdade que os escritores de hoje também escrevem para aqueles que os lêem. Assim, as suspeitas quanto às intenções desses escritores refletem uma inquietação sobre a nova ordem cultural que surgiu ao longo dos últimos 30 anos.
As pessoas que a consideram mais perturbadora são os representantes de países e instituições não-ocidentais. Os países não-ocidentais, vítimas de crises de identidade nacional, suspeitam dos romancistas criativos que encaram a história e o nacionalismo sob perspectiva não-nacional. Para eles, os romancistas que não escrevem a audiências nacionais tentam representar seu país como exótico, para "consumo estrangeiro", e inventam problemas irreais.
Existe uma suspeita paralela no Ocidente, onde muitos leitores acreditam que as literaturas devam permanecer locais, puras e fiéis às suas raízes nacionais. O temor secreto desses países é que um escritor que se dirija a leitores internacionais e opere com base em tradições externas à sua cultura venha a perder sua autenticidade.
É porque todos os escritores têm profundo desejo de ser autênticos que continuo a amar quando me perguntam para quem escrevo.
Embora a autenticidade do escritor dependa de sua capacidade de abrir o coração ao mundo no qual vive, depende também de sua capacidade de entender a posição mutável que ele ocupa no mundo.
Não existe um leitor ideal, livre de toda a estreiteza mental e de todas as proibições sociais ou mitos nacionais, assim como não existe um romancista ideal. Mas a busca de um escritor pelo leitor ideal começa quando o romancista imagina que ele exista e passa a escrever livros o tendo em mente.
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Este artigo foi publicado originalmente em julho deste ano no "International Herald Tribune".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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