quinta-feira, outubro 19, 2006
Hoje é dia de Contardo. O Piauí é aqui
O Piauí é aqui
Contardo Calligaris
A condição básica de uma convivência democrática é que se goste da vida concreta
CHEGOU ÀS bancas o primeiro número da revista "Piauí". Li de cabo a rabo, numa noite.
Aprendi tudo sobre Salem, nossa antepassada etíope de 3,3 milhões de anos atrás. Acompanhei Roberto Jefferson no dia das eleições e conheci o poema que, nessa ocasião, ele declamou junto com o pai, Roberto Francisco.
Entendi que há uma luta entre as baianas do candomblé e as neo-baianas, que vendem acarajé evangélico. Soube dos comentários dos ex-presidiários do Carandiru sobre a morte do coronel Ubiratan.
Conheci Fernando Henrique Freire, degustador de café; conheci José Cândido Sobrinho, que, há vinte anos, defende seus direitos trabalhistas contra a massa falida dos Diários Associados; soube que, no Pará, há policiais militares que montam búfalos reluzentes.
Li uma grande reportagem sobre como se trabalha (e por quanto) no telemarketing; outra sobre o engenheiro brasileiro seqüestrado no Iraque. Li o diário de uma jovem imigrante "ilegal" em Nova York.
Soube o que fez e pensou o jornalista Ivan Lessa, ao estar de volta ao Rio de Janeiro, depois de 28 anos de ausência. Aprendi como vive e trabalha Guilherme Guimarães, o estilista das noivas, e como foi que um jornalista americano tornou famoso um tal de Fidel Castro.
Soube também que Bertold Brecht não era "flor que se cheire". Li sobre o papagaio, animal nacional, sobre o turismo na Molvânia (que não existe, mas poderia existir) e sobre o hipopótamo. Também li uma breve ficção de Rubem Fonseca.
Um leitor dirá: "Legal, você se divertiu à beça, mas, logo neste momento da vida nacional, cadê as coisas "sérias", cadê a política?". De fato, a revista oferece um portfólio de fotografias de homens políticos, surpreendidos naqueles instantes em que, por acaso ou por descaso, suas máscaras vacilam.
Mas, para nosso leitor hipotético, isso não bastará. Ele insistirá na sua exigência, parecido com aqueles pacientes que, no consultório do terapeuta, sentem-se envergonhados ao falar das "bobagens" de seu dia-a-dia, como se seu cotidiano concreto não merecesse sua própria atenção e ainda menos a atenção do terapeuta.
Ora, na "Piauí", não há editoriais nem opiniões. Pela qualidade e pelo charme dos textos, a "Piauí" rivaliza com a "New Yorker", que a inspira.
Mas, embora eu seja um leitor inveterado da revista nova-iorquina, foi lendo a "Piauí" que entendi a relevância secreta do "novo jornalismo": ela não está no "subjetivismo" do repórter (que manifestaria seus estados de ânimo), mas no interesse pela vida concreta.
Não sei por que os colegas escolheram "Piauí" como título da revista, mas pensei o seguinte: não sei quase nada do Piauí, sei apenas que a capital é Teresina e acho o nome familiar e bonito (me faz pensar numa mulher simpática e conversadeira).
Agora, graças à "Piauí", sei que, desde 2005, em Teresina, há adolescentes praticando o badminton. É uma notícia sem importância? Não concordo, pela mesma razão pela qual acho que a chegada da "Piauí" é um evento político.
Os colegas da "Piauí", sem dúvida, acharão essa afirmação bombástica e retórica, mas fazer o quê? Aqui vai: a curiosidade e o carinho pelo cotidiano são os alicerces de qualquer política que não seja só vociferação. A condição básica de uma convivência democrática é que se torne relevante a variedade das vidas concretas, que são nosso Piauí, nossas terras desconhecidas ou silenciadas.
A "Piauí" nos traz esse Piauí, pelo Brasil afora. Considere "As Torres Gêmeas", de Oliver Stone. Alguns desdenharam o filme porque esperavam algo diferente: interpretações, quem sabe conspiratórias, dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 ou meditações sobre a perfídia da Al-Qaeda ou do atual governo dos EUA, tanto faz.
Ora, Stone contou a história de dois policiais enterrados nos escombros e da espera de suas famílias. Ele chamou isso de "As Torres Gêmeas", como se, naquele evento que alterou a cara do mundo, os fatos mais importantes fossem duas vidas concretas, duas vidas que, em geral, ninguém vê. Essa é a grandeza do filme.
"A Vida que Ninguém Vê" (editora Arquipélago), aliás, é o título de um livro imperdível de Eliane Brum, jornalista (hoje, da revista "Época").
É uma coletânea de relatos da vida cotidiana e miúda, escritos em 1999, para o jornal "Zero Hora". Eliane Brum é uma extraordinária repórter do Piauí de todos os dias.
PS(Laura):
Achei este trecho do livro de Eliane– O sapo.
Uma maravilha.
O sapo.
Eliane Brum.
“O mais incrível é que o Sapo estava ali havia 30 anos. E há mais de uma década nos cruzávamos na Rua da Praia. Minha cabeça no alto, a dele no rés-do-chão. Eu mirando o seu rosto. Ele, os meus pés. Só dias atrás tive a coragem de me agachar e nivelar nossos olhares, subvertendo as regras do jogo de que ambos participávamos. Não nos reconhecemos.
Descobri que o nome dele é Alverindo. Ele soube que me chamo Eliane. Contou-me que os amigos o conhecem por ‘seu Vico’, e o povo da rua por Sapo. Por causa da eterna posição, lambendo com a barriga as pedras da rua.
Contei-lhe que sou jornalista e escreveria sobre ele. E então apertamos as mãos.
Eis o que conversamos:
— Como o senhor está?
— Com saúde e bastante preguiça. Preguiça, pra dizer bem a verdade, até por dentro dos olhos.
— Como é a Rua da Praia aí de baixo?
— Olha, é só perna. Um mar de pernas. Mas eu não vejo só perna, não. Vejo de tudo um pouco. Vejo coisa que nem devia…”
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