terça-feira, março 14, 2006

Mini conto. Neruda, meu amor.


















Foto Fernando


Neruda, meu amor.

Ela foi se fechando aos poucos, quando se deu conta não saia mais de casa. Havia sempre uma desculpa, uma dor de cabeça, um trabalho para entregar, o cachorro que não podia ficar só...
A família depois que a mãe morreu esqueceu dela. Não havia mais porquê visitá-la, enquanto a velha estava ali vinham uma vez por semana. Cada um foi para seu lado. Tudo girava em torno da mãe, "Como mamãe está hoje?" , "Mamãe comeu bem hoje?", eram as perguntas que ouvia ao atender o telefone, ninguém queria saber como ela estava, era invisível. Tinha gestos suaves, falava baixo, aprendeu que não deve se fazer chamar atenção, nem ruídos, para não incomodar os outros. Agora não existem "os outros", os vizinhos mesmo que gritasse não a ouviriam pela distância.
Um dia o vizinho notou que há dias a janela estava aberta mesmo na chuva e achou estranho. Bateu na porta e nada, nenhum ruído. Chamou a mulher, perguntou se havia notado a presença da vizinha estes dias, "não, não a via a dias". Com uma escada olharam pela janela e viram as pernas magras no chão, muito brancas.
Há dias o corpo jazia atrás do sofá, ao lado um livro de Neruda e o cão que lambia a boca crispada da morta.

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