Os Iks, Kitty Genovese e o Engenho de Dentro
Contardo Calligaris
Na coluna da semana passada, comentei uma reportagem de Elvira Lobato sobre o que aconteceu recentemente numa rua do Engenho de Dentro, bairro de classe média da zona norte carioca.
Numa madrugada, os moradores encontraram um carro com dois cadáveres retalhados; uma das cabeças estava exposta em cima do capô. Provavelmente, tratava-se de uma desova "exemplar" do tráfico. Pois bem, foi uma algazarra de zombarias e fotografias (utilidade comprovada dos celulares com câmara digital).
Propus uma primeira reflexão, que resumo brevemente. Num mundo higienista, a subjetividade é definida pelo corpo, visto que, entre os sonhos que dão sentido à vida, prevalece o ideal do bem-estar físico. É ótimo para a saúde, mas a conseqüência é que a morte do outro não é mais um espetáculo propriamente angustiante; o cadáver nos mostra o que já acreditamos: no fundo, somos apenas alguns quilos de carne e ossos.
Não conseguirei responder a todos os leitores que me escreveram, mas, encorajado pelos comentários, proponho mais duas reflexões suscitadas pelo caso do Engenho de Dentro.
Como entender, além da indiferença, o escárnio dos corpos massacrados?
1) Um antropólogo inglês, Colin Turnbull, viveu três anos (de 1964 a 1967) entre os Iks (leia: iiiks), um povo de caçadores-coletores nas montanhas de Uganda. Em princípio, os caçadores-coletores estão sempre em movimento: os homens caçam e as mulheres colhem produtos espontâneos da natureza (raízes, sementes etc.).
Os Iks eram uma sociedade tradicional com costumes de cooperação tanto na caça como na colheita, mas, a partir dos anos 50, as nações africanas começaram a cuidar de suas fronteiras, criaram parques nacionais etc. Conclusão: os Iks foram aprisionados num território limitado e inóspito.
Em "The Mountain People" (o povo da montanha), de 1972, Turnbull narra a catástrofe cultural dos Iks, assolados por fome e miséria. Foram-se solidariedade e cooperação. Os homens pararam de levar suas presas para as mulheres e as crianças se alimentarem: eles comiam sozinhos, na hora. O mesmo valia para as mulheres em sua colheita. A sociedade se desfazia no "cada um por si". Sobreviver era a tarefa imperativa de cada indivíduo, e o infortúnio do outro passou a ser, justamente, divertido: "Melhor ele do que eu".
2) Em 13 de março de 1964, Kitty Genovese, aos 29 anos, foi assassinada numa rua tranqüila de classe média, no bairro de Queens, em Nova York. Voltando do trabalho, de madrugada, ela foi esfaqueada 17 vezes por um estuprador. Seu martírio durou meia hora; repetidamente, o agressor foi embora e voltou para completar sua "obra". Por que essas interrupções? Os gritos de Kitty acordaram os vizinhos, alguns abriram a janela para apostrofar o assassino: "Deixe aquela moça em paz". Mas, entre as 38 testemunhas desse horror, ninguém desceu na rua e ninguém chamou a polícia.
A morte de Kitty teve várias conseqüências. Para começar, foi instituído um número único e simples (911, em Nova York) para contatar a polícia em caso de urgência e mudou o atendimento: nada de "Quem está falando? Seu RG? Seu CPF?", mas, ao contrário, "Senhora, fique calma, estamos a caminho, só me diga exatamente onde você está".
Os psicólogos sociais americanos se dedicaram a entender o acontecido. Poucos meses depois da morte de Kitty, reuniu-se um simpósio sobre a inércia do espectador urbano. Seis anos e muita pesquisa mais tarde, em 1970, Latané e Darley publicaram "The Unresponsive Bystander: Why Doesn't He Help?" (o espectador inerte: por que não ajuda?), que ainda é uma obra de referência.
Latané e Darley constataram alguns funcionamentos instrutivos: a "abdicação da responsabilidade" ("Isso não é comigo, é com as autoridades, com a polícia") e a "difusão da responsabilidade" ("Não preciso chamar a polícia, pois um outro certamente já se encarregou disso"). Esse segundo funcionamento cria um paradoxo curioso: quanto mais numerosos forem os espectadores, tanto menos cada um deles se sentirá compelido a intervir. Da próxima vez que você for esfaqueado, escolha um lugar com uma ou duas testemunhas no máximo.
Poucas semanas depois da morte de Kitty, Stanley Milgram, outro genial psicólogo social, publicou seu comentário na revista "The Nation". No fim do texto, ele observava que talvez a inércia dos espectadores fosse um efeito da divisão urbana. Nos anos 60, para os nova-iorquinos de classe média que foram acordados pelos gritos de Kitty, a rua e a madrugada eram uma outra cidade, se não um outro país. Uma vez fechada a porta de sua casa e até à manhã seguinte, eles consideravam (e constatavam) que o espaço urbano pertencia a um povo que não tinha nada a ver com eles, um povo de drogados, bêbados, miseráveis e criminosos. Quem circulava naquele espaço não fazia parte de sua comunidade.
É o que podem ter pensado os moradores do Engenho de Dentro: "São cadáveres do tráfico, destinados a intimidar drogados que não pagam suas dívidas. Nada a ver com a gente. Podemos festejar, pois são mortos de uma outra tribo, uma tribo inimiga".
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