Maravilha este texto do filho do João Bosco, o rapaz é bom, inteligente e sensível. Quem conhece o carioca sabe que isto é verdade pura.
O indireto afetivo na linguagem do carioca
Francisco Bosco
No Rio de Janeiro contemporâneo há uma figura lingüístico-afetiva que pontua freqüentemente as relações sociais entre cariocas (ou entre um carioca e um ‘estrangeiro’). Não saberia dizer desde quando existe esse traço lingüístico, mas não me lembro da linguagem carioca sem a sua presença constante. Trata-se – e todo carioca ou qualquer pessoa que já esteve no Rio o reconhecerá – do famigerado diálogo:
–“Rapaz, há quanto tempo!”
–“Pois é, que bom te ver!”
–“Poxa, a gente tinha que se falar mais!”
–“É mesmo, vou te ligar.”
–“Mas liga mesmo, pra gente se ver, botar o papo em dia.”
–“Não, pode deixar, vou ligar com certeza.”
–“Beleza, então, vou esperar. Adorei te ver!”
–“Eu também, te ligo então. Um grande abraço!”
Isso ou variações.
Pois para muitos cariocas, que já estão mais do que familiarizados com o diálogo, e talvez sobretudo para os não-cariocas, que constataram perplexos o encaminhamento futuro dessas promessas, essa figura lingüística acaba por se configurar como uma situação de constrangimento. Afinal, todos sabemos que não haverá telefonema algum; todos, literalmente: a começar pelos próprios personagens da conversa. E a fórmula do constrangimento, já se disse, é precisamente essa: todos sabem que todos sabem e entretanto ninguém o pode admitir. Curiosas sutilezas sociais. O que impede que se desencubra o não-dito do diálogo é que esse não-dito é uma mentira: não haverá telefonema, um não ligará para o outro, e vice-versa. Assim, o não-dito é mantido e desenvolvido, cria-se uma conversa sustentando a sua tensão: está plenamente configurada a situação constrangedora.
Mas o que faz com que a situação seja por muitos experimentada como constrangedora é justamente o entendimento desse não-dito, dessa promessa que sabemos sem fundos (“te ligo, com certeza”) como sendo uma mentira. Fulano disse que ia ligar, mas não ligou: mentira, portanto. Pior: fulano prometeu que ia ligar, enfatizou, assegurou, sublinhou a promessa com todas as inflexões e entonações da convicção: mentira ainda mais grave, gravíssima.
Entretanto, tudo muda se pensarmos o recalcado do diálogo, o não-dito, não como uma mentira, mas como um modo indireto da verdade. Assim, o horizonte em que a promessa passa a ser verdadeira não é mais a sua efetivação posterior, mas o que, dentro dela, vibra afetivamente: “te ligo” passa a significar “gosto de você”, “vou ligar com certeza” traduz-se por “gosto muito de você”, e assim sucessivamente, a intensidade afetiva aumentando à proporção das entonações e expressões de segurança. Fernando Pessoa dizia que “a linguagem pode mentir, mas a voz não”. Ora, justamente, nesse fragmento de carioquês a verdade está na voz, no afeto que nela pulsa e se manifesta explicitamente. Mas, cabe então a pergunta: por que engajar esse afeto em uma promessa sem fundos, que se sabe não será cumprida? Por que comprometer sua verdade associando-o a uma efetivação que não ocorrerá?
A origem dessa curiosa figura sócio-lingüístico-afetiva é uma outra figura: uma sutil configuração da amizade que costuma se formar numa das curvas que o tempo impõe a determinadas amizades. Essa configuração ocorre quando uma amizade intensa passa de um estado de intimidade diariamente atualizada - conversas freqüentes, presença física constante, confissões, vidas em permanente comunicação - para um estado de amizade em que a distância se interpõe e dispersa as trajetórias dos amigos, porém algo da intimidade da outra configuração resiste a essa nova forma e se mantém intenso, incólume à distância. Esse “algo da intimidade” se transforma em um afeto perfeitamente constante que, adormecido e escondido pela distância, emerge efusivamente na presença do amigo. Afeto à distância. Quase-intimidade que se evidencia, para deleite dos amigos, a cada vez que o acaso propicia um encontro. Mas, em geral, os movimentos divergentes das trajetórias de vida são irreversíveis, na medida em que atingem o processo de subjetivação de cada um dos amigos: os amigos já não são mais os mesmos, pensam e sentem de forma diferente, são outros, não podem ter a cumplicidade que tinham antes - não da mesma forma. O que resiste, o afeto, é resultado de uma intimidade de tal modo condensada que, por excesso, atingiu como que uma existência própria, interpessoal, portanto imune às mudanças de vida dos amigos.
Perde-se a intimidade, já não se sabe tão bem da vida do outro, mas fica, incorruptível, o afeto, que emerge efusivamente nos encontros fortuitos. Pois, justamente, é essa consciência (que pode ser apenas intuída, porém claramente) da perda irreversível da intimidade, da impossível recuperação da amizade, que virá a produzir o diálogo de que estamos tratando. O afeto é verdadeiro, é uma positividade, mas há em sua formação uma perda, uma impossibilidade: a da intimidade perdida. Isto é: telefonar seria um erro, seria apostar demasiadamente na improvável recuperação do estado antigo da amizade. Doravante a amizade é isso: o afeto efusivo, a alegria dos encontros fortuitos - que entretanto tenderia a perder a efusão se se tentasse um movimento restaurador. O recalcado do diálogo, o não-dito, se forma nesse ponto: é que seria duro demais trazer à tona o núcleo de perda e de impossibilidade que se encontra na formação de um afeto tão positivo, tão efusivamente manifestado. Opta-se por escondê-lo, e para tanto faz-se necessário mascará-lo com a promessa da restauração: “Vou te ligar”. Quanto maior a consciência - ou a intuição - da impossibilidade, e de quanta perda ela encerra, maior a necessidade de mascaramento: “Vou te ligar, com certeza”.
Assim, curiosamente, quanto maior a mentira, maior a verdade. A verdade do afeto não se subordina à efetivação da promessa, mas se manifesta, indiretamente, através dela: “Vou te ligar, com certeza” significa apenas “Gosto muito de você”, e o não cumprimento da promessa significa o mascaramento protetor de um afeto delicado. Pois a verdade nua e crua, desprotegida, poderia ser muito... constrangedora: “Rapaz, há quanto tempo! Veja, gosto de você, fomos muito íntimos, mas hoje somos bem diferentes, não acredito que possamos retomar a antiga cumplicidade, por isso vamos apenas gozar desse momento de alegria fortuita, sem fazer promessas que não poderemos cumprir.” Pois o constrangimento também surge de um excesso de dizer, e não apenas de um não-dito gritante. Na verdade, penso, nosso famigerado diálogo carioca só se torna constrangedor se sua verdade nuclear - o afeto incorruptível - não for forte o suficiente para sustentar, à base de cumplicidade, a tensão do mascaramento. Quando o mascaramento é bem feito o diálogo transcorre sob intensa e efêmera efusão afetiva - e somente na despedida passa por nós a brisa de uma melancolia.
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