quinta-feira, junho 19, 2014

Chico Buarque, por Luiz Fernando Vianna










Luiz Fernando Vianna
Folha de São Paulo


Se era incômodo para Chico Buarque ser classificado como unanimidade nacional, ele completa aliviado hoje seus 70 anos. Chico é odiado por muita gente.
Ao menos é o que se deduz da fartura de comentários negativos que podem ser lidos em sites noticiosos e nas redes sociais.
O nível é similar ao utilizado contra a presidente Dilma Rousseff na abertura da Copa —os autores devem ser da mesma (falta de) classe e ter o mesmo, digamos, pensamento político.
Chico já riu desse ódio em vídeo divulgado em 2011, quando do lançamento de seu último CD de inéditas. Mas tanta fúria talvez não se resuma ao proverbial horror brasileiro, que Tom Jobim ressaltava, a quem faz sucesso.
Ao contrário do que prega o lugar-comum, as composições mais recentes de Chico são, no mínimo, do mesmo nível das que ele fez em décadas passadas. Mas dizem pouco, ao menos diretamente, sobre o tempo presente.
Nem há presente em muito do que ele vem escrevendo desde o final dos anos 1980. Seus quatro romances publicados embaralham épocas e lugares, driblando linearidades. Bem diferente da novela política "Fazenda Modelo" (1974).
São várias as canções em que o tempo corre a despeito de realismos: "Todo o Sentimento", "Valsa Brasileira", "Futuros Amantes", "Bolero Blues" etc.
As melodias se tornaram ainda mais complexas; as harmonias, mais imprevisíveis.
Cobra-se dos grandes artistas uma produção que acompanhe e explique a atualidade. A velocidade das informações e de tudo tornou arriscadíssima essa missão.
E Chico, ao contrário de Caetano Veloso, não se preparou para ela.
Na última vez em que o compositor tentou entrar no debate público, quebrou a cara. Sua opinião a favor da proibição de biografias não autorizadas mostrou que devia ter conversado e pensado mais antes de falar.
A privatização no Brasil do espaço público (nos aspectos físico e simbólico) levou o individualismo e, por tabela, a intolerância a determinarem o rumo das discussões.
Transformado na arena principal, o Facebook reflete isso. As opiniões precisam ser tão rápidas quanto peremptórias; ou se é PT ou PSDB; ou se é qualquer coisa ou se é contra qualquer coisa.
Fazer selfies e trocar diariamente a foto do perfil é o que muitos parecem entender como participar da vida pública.
Basta olhar para a obra de Chico, sobretudo a recente, e ver que ele não tem os melhores recursos para viver nessa selva.
Se a nossa vida pessoal virou mercadoria tão barata, como ter calma e delicadeza para apreciar canções como "Nina" e "Sem Você 2", nas quais os sentimentos são bens valiosos?
Ainda bem que, tão forte que é, "Sinhá" se impôs em meio à barulheira.
Já faz tempo que Chico Buarque perdeu o sentido da urgência. E nós vivemos soterrados por ela.
Mesmo no passado, ele nem sempre foi feliz quando quis falar do momento em que vivia. Uma peça como "Roda Viva" e canções como "Agora Falando Sério" e "Cara a Cara" mostram os perigos da instantaneidade.
Ele acertou muito mais quando se aproximou do presente a partir da poesia ("Sabiá"), do humor ("Acorda, Amor") ou da história ("Calabar").
Mas isso de pouco vale a quem descobriu na internet um parque de diversões para seus monstrinhos interiores. Essa turma vê (e condena) Chico como representante dos status quo acadêmico (é filho de um grande historiador), cultural e agora político (com o PT no poder).
Não interessa que ele seja um dos artistas fundamentais para se pensar o Brasil do século 20. Quem odeia, por definição, não pensa.
E Chico ainda desperta inveja por ter um apartamento em Paris, onde, para sorte dele, passa o dia de hoje. Estivesse andando por aqui, poderia ouvir mais de perto um corinho virtual: "Chico, vai tomar no c...". Talvez o corinho surja nos comentários a este texto.

LUIZ FERNANDO VIANNA é coordenador de internet do Instituto Moreira Salles.

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