sexta-feira, abril 18, 2014

Parkinson e Domingos de Oliveira




O cineasta, com Parkinson há 14 anos, nos recebeu em seu apartamento, no Rio (Daniel Marenco/ Folhapress)



Daqui

Parkinson de diversões


Assim que se abre a porta do elevador o visitante é recepcionado ainda no hall de entrada por um cartaz de cinema com Leila Diniz  e Paulo José, “Edu Coração de Ouro” – o segundo longa de Domingos de Oliveira, depois de “Todas as mulheres do mundo”.  Entrando em seu apartamento no quarteirão da praia no Rio de Janeiro vemos o cinema e o teatro estampado em fotos, cartazes e prêmios.
No escritório com vista enviesada para o mar do Leblon, sentado em sua poltrona estava Domingos de Oliveira.
Com um Parkinson que ralenta seus movimentos físicos mas não segura a rebeldia da cabeça veloz,  Domingos contou que tem um filme pronto para ser lançado com Fernanda Montenegro no elenco (segundo ele seu melhor filme), outro previsto para ser rodado ainda este ano, uma autobiografia saindo depois da Copa, além de duas peças que está ensaiando, aos seu incansáveis 77 anos.  “Isso por que somente trabalho nas horas vagas. É que tenho muitas horas vagas.”
Falamos  de arte,  vida,  velhice, morte, amor – e o convívio com a doença. “Continuarei afirmando grandiloquentemente que a vida é bela.”


Como foi descobrir que tinha Parkinson? O que efetivamente mudou de lá pra cá? 

Meu amigo Paulo José chama de Parkinson de diversões, tenho há 14 anos. Sou considerado paciente exemplar, posto que não tenho tremores. De um ano para cá ralentei meu passo, fica parecendo até que sou um velho de 77 anos. Escondi muitos anos meu Parkinson com medo de perder mercado de trabalho. As pessoas têm horror a doenças. É mais um preconceito. Parkinson nunca me atrapalhou de trabalhar, como prova a minha produção recente. Quando me perguntam na rua: “Domingos o que você está fazendo?”, continuo respondendo: “você tem tempo para me ouvir?”. Enfim, Parkinson não mata, terei de morrer de outra coisa. E o que não mata dá caráter. Fiquei bem mais inteligente com o Parkinson, ou terá sido com a idade? A velhice é coisa para os outros. Tenho 32, 34 anos. Sempre tive essa idade e sempre terei, por dentro. Por fora é aquela decadência dos 77, talvez 78 quando você estiver lendo esta entrevista. Estou ficando um pouco cansado com o incômodo dos sintomas. Mas Parkinson não mata. Quando alguém vem se queixar digo num certo mau humor, é uma gripe forte!

Como uma doença degenerativa como Parkinson repercute na sua vida e na sua obra?

É muito frustrante você saber que nunca vai ficar bom.

Existe poesia na doença?

Existe mais na saúde. Mas o sofrimento traz, como já disse, uma certa sabedoria e maior compreensão das coisas. Somente perto da morte (combinei comigo mesmo morrer aos 111 anos) é que se pode perder o medo dela. Mas não queiram ter Parkinson, ninguém sabe explicar de onde veio, é uma doença imprevisível e constante como uma louca nua.

A arte envelhece?

A arte é aquilo que não envelhece. Que tenta dar um truque no tempo. A Gioconda é sempre a Gioconda, por isso ela sorri. A arte é uma rebeldia contra a mais forte lei do tempo: tudo muda, tudo passa, tudo acaba. A arte não. É perene. Tem a safadeza de querer sê-lo. A arte que envelhece é a arte ruim. A boa arte vem da essência do homem, de uma fonte muito estável, confiável.

E o artista, envelhece?

Também não. Seus assuntos, suas preocupações, seu estilo certamente mudam e eventualmente podem envelhecer. O artista tem uma coisa a dizer, apenas. Ele mesmo. Por isso o público desavisado, o espectador, o leitor, por vezes se cansa do artista. Allen, Chaplin, Welles, Fellini e até mesmo Oliveira  fizeram sempre o mesmo filme. E pessoas de pouca imaginação, em vez de se regozijarem em seguir seu pensamento, vão para as esquinas dizer que o artista se repetiu, que é um vaidoso. Um auto-idólatra, um paranóico ou um pedófilo. Mas isso é o problema das outras pessoas, daquelas que envelhecem.

Diante da morte ocorre o empalidecimento da arte?

Eu poderia responder: diante da morte ocorre o empalidecimento de tudo. E poderia responder: não absolutamente! O artista sente medo de morrer como todos sentem. O medo tem muitos disfarces, poderia dar um baile à fantasia. Mas é sempre um só, o medo da morte. Diante desta preocupação magna, o artista pode, por algum tempo, pensar menos na sua arte, esquecê-la por momentos. Mas não é nada que um copo d’água gelado não resolva. Estou com medo desta entrevista, por que estas perguntas me obrigam a assumir este papel de representante da arte.
Um homem não deve confessar que é um artista. O fato lhe confere de alguma forma superioridade, causando imediata inveja ou outra reação violenta do tipo. Um amigo meu tem QI altíssimo esconde isso, como quem esconde a chave do cofre. Ninguém pode saber. É um segredo entre os artistas, mas eles sabem quem são, reconhecem sua turma. A palavra “arte” devia ser abolida, está gasta. Nunca conseguiu desvencilhar-se da aristocracia. Corroída pelos que sem entendê-la, odeiam-na. Perdeu o vigor. Um “filme de arte” é um palavrão. Recomendo trocar por “filme útil”. Por que isso que a arte é, acima de tudo: útil.   Único bisturi que alcança a esperança de resgate do mundo. Atualmente, por falar nisso, há uma certa ideia constrangedora de que o cinema, por exemplo, deve dar ao seu espectador o que ele quer e não o que ele precisa. Certamente não é uma coisa que se diga alto, nem que se possa defender. Qualquer ser pensante sabe da importância social da arte e sua privilegiada contundência na formação e no caráter das pessoas. Todo problema social é na verdade cultural. No aprimoramento das pessoas reside a chance única de evitar o caos iminente. O mercado é o caos. O cinema pode ser um bom negócio, tomara que seja. Mas não pode ser apenas um negócio. Sem arte é a barbárie, embora a obviedade da ideia, muitos não entendem, não tem esse compromisso.

E o amor, envelhece?

Sou um romântico, muita gente sabe disso. Creio que há algo de eterno no amor. Não usei a palavra errada, foi isso que eu quis dizer: eterno, além do homem. Não sei provar esta afirmativa, mas amar a pessoa é vê-la como Deus a fez. E olhe, não acredito em Deus absolutamente, sou um ateu místico como tantos. Mas que existe, existe. Como no ditado espanhol, “no creo em las brujas pero que las hay, las hay”. Deus é a ideia mais fértil que o homem já concebeu. A existência do próprio é um detalhe. E o amor, principalmente a paixão, é o Himalaia de Deus. Me desculpe, hoje acordei frasista. É tudo frase feita, vou tomar precauções de agora em diante.

O casamento resiste ou persiste ao tempo?

Para responder essa questão incômoda devo recuar um passo. O homem, embora no fundo goste de provar o contrário, é um animal primitivo, mal feito. Burro. O que lhe ensinam menino fica gravado indelevelmente. Na maior parte das vezes te leva a fazer burrices. A famosa adaptabilidade do Homo Sapiens, que lhe deu o polegar opositor e a posse do mundo, concentra-se apenas em seu intelecto. O sentimento profundo é arcaico, rígido. Os preconceitos que temos em nós contra o casamento são tão falsos quanto arraigados. A repressão sexual da humanidade é imensa, até Freud sabia disso. Somos todos meninas do Sacré Couer de Marie. Sartre, meu mestre querido e irresponsável, afirmava que a liberdade do homem é total e infinita. Pode até ser que Jean Paul não estivesse de porre numa mesa do Café du Fleur. Com certeza não se referia a liberdade sexual. Essa repressão básica obriga certa decadência dos casamentos. Mas não sei bem. Confesso que tenho encantos por minha companheira de décadas como se eu tivesse a conhecido ontem. Juro. Claro que não é todo dia, nem todo dia é dia santo. Não sei nada sobre o assunto, as pessoas cismam que sei. Estudei o amor em aulas teóricas e práticas a vida inteira. Concluí que é como a química orgânica: não é para entender, é para decorar. Odeio a coerência, eu.

O que é a juventude? Uma memória ou uma nova geração?  Qual a distância entre você e alguém da nova geração? Como vê a juventude atual? Como acha que te vêem?

Um monte de perguntas numa só. A juventude é um poder fantástico, quase sem limites. Mas nenhum jovem sabe disso. Não sinto distância na nova geração, mas eles sim, de mim.
Se você quer falar de um assunto, pontificar a sua sabedoria, eles param a festa, sentam ao seu redor respeitosamente, as moças até ficam mais encantadoras. E eles te ouvem até o fim. Mas aí recomeça a festa, e os jovens te deixam muito claro que você não é mais da “turma”. Eu não sou mais um deles. É  assim que eles me tratam. A vida é assim. Não sou mais um deles! Devo inclusive evitar com todas as minhas forças minha atitude natural de dar a ultima opinião certeira sobre os assuntos… se não quiser perder amigos. Desperdiçar minha sabedoria, e ficar calado muitas vezes, em vez de revelar tesouros preciosos que seriam úteis a todos. Ridículo. Vou subir este astral. O que você quer, que eu elogie a velhice ou arme o circo da auto piedade? De um lado o leão feroz, do outro o tigre sangrento.  Não farei nenhuma dessas duas coisas. Continuarei afirmando grandiloquentemente que a vida é bela. E se eu não tivesse o mundo dentro de mim, ficaria cego quando abrisse os olhos.

Concluindo. Meu mais recente e inédito filme “Infância” com Fernanda Montenegro é meu melhor filme. Minha autobiografia “Vida minha” sai logo depois da Copa, se houver um depois da Copa. Pretendo rodar dois filmes ainda este ano. Uma peça adulta e outra infantil etc. Isso por que somente trabalho nas horas vagas. É que tenho muitas horas vagas.


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