segunda-feira, junho 30, 2008
João Guimarães Rosa - cem anos
Enfim, um reporter que escreve bem. Uma delícia o relato dele da festa para G. Rosa.
Guimarães Rosa, ano 100
Centenário de João Guimarães Rosa terá inéditos e reedições; cidade natal do autor comemorou data na sexta-feira, com missa e canjica na praça
Fernando Donasci/Folha Imagem
Vilma Guimarães Rosa, filha escritora, tomou posse na ACL
IVAN FINOTTI
ENVIADO ESPECIAL A CORDISBURGO (MG)
-Vilminha, vou te dar uma dica de escrita. Sabe o que é mais importante na hora de escrever um conto? É o começo.
-Por quê, papai?
-Para a pessoa se interessar e ler inteirinho. Agora, me descreva o que você está vendo.
-Uma moça alegre e bondosa, papai.
-Nada disso, Vilminha. É uma moça de vestido amarelo.
Se ela é alegre e bondosa, você vai falar depois. Na primeira vez que você descreve alguém num conto, diga só o que você vê. Entendeu, Vilminha?
Mas nada disso vale fala, porque a estória de um escritor, como a história de um burrinho pedrês, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de João Guimarães Rosa foi toda comemorada em algumas horas -nove da manhã às nove da noite- no dia 27 de junho de 2008, que o autor nasceu em dia igual de 1908, na pequena Cordisburgo, perto da gruta do Maquiné, no centro de Minas Gerais.
E na comemoração de seus cem anos serão lançados 15 livros, sendo que dois já o foram na sexta passada, em Cordisburgo, nome meio latim, meio alemão, que significa cidade do coração, a uma hora de distância de Belo Horizonte, mais ou menos, a depender dos caminhões.
Teve missa de manhã, abertura de exposição no museu do escritor, almoço com torresmo, orquestra sinfônica na igreja, lançamento de selo dos Correios e show ao vivo, sem falar na canjica com amendoim servida na praça. Foi lançado um livro biográfico, escrito por sua filha, a Vilminha, que lhe seguiu os passos no mundo das letras depois de tanto ouvir dicas; e outro, para as crianças, sobre um dos assuntos preferidos do escritor, os bichos. Nesse infantil, Rosa comete descrições exatas do mundo animal. Como essa, que define o macaco e, de quebra, o homem também: "O macaco: homem desregulado. O homem: vice-versa; ou idem."
O burrinho pedrês, primeiro personagem de "Sagarana" (1946), tão querido dos leitores, não entrou no livrinho, então aí vai para que ninguém fique triste: animal miúdo, idoso, beiço inferior caído, pêlo ralo e encardido; não entra em lugar de onde não pode sair.
E quem conheceu de perto o burrinho pedrês foi o Juca Bananeira, personagem do conto e figura andante de Cordisburgo. Bananeira era empregado do seu Florduardo, o pai de João Guimarães Rosa, e foi pajem do menino. Contava-lhe histórias, que João mais tarde escreveu.
Além de cuidar do Joãozito, Juca Bananeira foi boiadeiro, carroceiro, açougueiro e ainda por cima delegado. Isso tudo sem saber ler nem escrever.
Pois Bananeira morreu com 104 anos em 1998 -um ano depois do Manuelzão, outro boiadeiro que virou personagem do Rosa. E a neta do Bananeira, Tania Cristina Trambini, 42, está comemorando o aniversário do escritor em Cordisburgo.
E a filha dela, bisneta do Juca Bananeira, que não sabia ler nem escrever, já está na faculdade de enfermagem; é a evolução do sertão.
Boiada
A dona Antonieta da Silva tem 87 anos e veio para a missa em homenagem ao escritor. Ela conheceu o homem em pessoa, em 1952, quando Rosa acompanhou oito vaqueiros trazendo uma boiada desde a fazenda da Sirga, na beira do São Francisco, até a fazenda São Francisco, em Araçaí, tudo sendo em Minas Gerais. Foram 11 dias e 240 km, e essa viagem é importante demais porque foi ela que inspirou um bocado de coisas, como "Grande Sertão: Veredas" e as nove novelas de "Corpo de Baile". A boiada vinha de vereda em vereda, que no sertão vereda é como oásis no deserto, uma junção de vegetação com água no meio. E a vegetação é principalmente um aglomerado de palmeiras chamadas buritis, com folhas tão verdes como os olhos de Diadorim -o escritor escreveu essa comparação depois, para dar uma idéia da importância dessa viagem para a literatura brasileira-, e que brilham sob o sol.
Na ocasião, a comitiva parou na fazenda do marido da Antonieta e pediu pouso. "Ele disse assim para mim: "O que vocês comerem eu como, não se preocupem comigo". E pro meu marido ele disse: "Muito linda a sua esposa'", relembra satisfeita a senhorinha, que já esqueceu o que serviu de comer ao Rosa.
Em matéria de relembrar, Vilminha, ou Vilma, que não é mais o pai quem lhe fala, lançou seu livro "Relembramentos" e foi homenageada pela Academia Cordisburguense de Letras, que a empossou presidenta. Vestida com camisa de onça e sapato de onça, a filha do escritor ganhou até apelido da gurizada de Cordisburgo: "Já acabou a posse da onça?". Não, não acabou. Parecia que não acabava nunca a cerimônia, que Cordisburgo pode ter só 9.000 filhos, mas tem 30 ilustres escritores, e todos tinham o que dizer na posse da onça.
O curioso é que Joãozito, quando adolescente, freqüentava a fazenda do primo perto do ribeirão do Onça, "do" Onça porque é do (município) do Onça. E quem sabe desses detalhes todos da vida do Rosa é o Brasinha, José Osvaldo dos Santos, 52, que tem uma loja de roupas em Cordisburgo, mas cujo gosto mesmo é estudar o escritor.
"Eu procuro o real dentro da ficção", conta o Brasinha, que seguiu os passos de Manuelzão, Juca Bananeira, Zito, Santana, Gregório e do burrinho pedrês, aquele mesmo que não entra em lugar de onde não pode sair.
Brasinha conhece uma vereda a 15 km de Cordisburgo. "Divera, Brasinha?" "Divera! Vamos lá conhecer, que você tá num cangari. Assim é peta.
Mesmo que você não queira, o sertão é assim". É preciso tomar cuidado nos sertões, para não pegar sinais de bicheira, a exemplo do burrinho pedrês, que é esperto, prefere evitar danos inúteis e nunca entra em lugar de onde não pode sair. É que lá "fazem vôo, zumbidoras e mui comadres, a mosca do berne, a lucília verde, a varejeira rajada, e mais aquela que usa barriga azul".
-Vilminha, tenho mais uma dica para você. Sabe qual é a outra coisa mais importante num conto?
-O quê, papai?
-É o fim. Para que a pessoa tenha vontade ler o próximo.
O jornalista IVAN FINOTTI e o repórter-fotográfico FERNANDO DONASCI viajaram a convite da Editora Nova Fronteira
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