segunda-feira, junho 09, 2008

Mini conto: O amor partido

Foto André Kértesz


O amor partido


Ela é louca, os amigos dizem em sussurros. Tão louca que não percebeu que ele desistiu dela há anos.
Desde quando não eram mais amantes? Anos! Viviam distantes. Desde que ele adoeceu. Exclamam baixinho.
Ela, que não é a viúva, chora copiosamente num canto. Sabe que nunca desistiram de se amar, apenas não se viam mais.
A legítima, condoída, sofria junto do caixão. Como viveria sem aquele que tudo resolvia?
Os mais chegados sabiam do amor maior dos dois. Aquilo não podia ser só amizade, diziam. A alguns ela confessara em noites de agonia e saudade.
A casa, antes alegre e iluminada, fica na beira do canal. Quantas noites ela se esgueirou por ali à espera de que ele ouvisse seu desejo e viesse olhar o mar.
“A maré está alta hoje”. “A lua hoje me lembra aquele dia...”
As portas abertas, as vozes das crianças... Ela ficava na penumbra, numa distância segura. Se a vissem não se surpreenderiam, é amiga do dono da casa desde a infância. Todos sabem.
Criados em cidades pouco distantes e depois em bairros vizinhos, só se viam nos encontros clandestinos. Ali, tudo era possível. O beijo mais louco, a entrega plena.
Nunca brigaram, nunca romperam. Ele nunca disse que ficaria com ela. Ela não cobrou nada. Eram amigos, afinal. E ela livre para escolher quem quisesse- nunca fez nova escolha possível.
Agora que ele virou cinzas, a memória a ataca:
“Por que você não é mais ousada? Rode a baiana”.
Não saberia.
Teria sido diferente, sabe. Não fácil. Acredita que poderiam ter sido, juntos, mais felizes.
Quem sabe, ele ainda estivesse vivo e ela menos partida?

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