quarta-feira, agosto 01, 2007

Adeus a Bergman e Antonioni marcam o fim do século XX


Duplo adeus marca fim de era


Diretor de "A Noite" apostou nos tempos mortos para retratar o mal-estar burguês em seus filmes

Cássio Starling Carlos
Crítico da Folha

Uma segunda-feira que registra a desaparição de Ingmar Bergman e de Michelangelo Antonioni não é um dia de luto apenas para os cinéfilos. A morte sucessiva destes dois gigantes marca também o fim de um tempo, especificamente o século 20, mas não de seus problemas.
Oriundos de uma mesma geração e alçados à cena pública quase simultaneamente, os dois diretores conseguiram juntos levar ao cinema a transformação pela qual passava o homem ocidental depois da barbárie da Segunda Guerra.
Bergman o fez através das subjetividades. Antonioni escolheu a objetividade.
A escolha da objetividade como núcleo da representação da crise do homem moderno decorre das origens cinematográficas de Antonioni, junto aos pioneiros do neo-realismo italiano. Passado, porém, o momento em que a proeminência do tema social era mais relevante, ele se afirma como diretor de longas com uma visada cujo foco se atém ao individual.
Tratava-se, agora, de prosseguir as conquistas estéticas do neo-realismo (um modo de representação da realidade assumidamente crítico) deixando de lado a bicicleta.
Em referência ao clássico "Ladrões de Bicicleta", de Vittorio de Sica, Antonioni escreveu em 1958: "Hoje, que eliminamos o problema da bicicleta, é importante ver o que há no espírito e no coração desse homem de quem roubaram a bicicleta, como ele se adaptou, o que sobrou nele de todas as suas experiências".
Desde o início, estava sendo gestada em sua obra uma nova estética, na qual a psicologia não se perde em discursos verbais, mas encontra lugar na forma como o diretor agencia sons e imagens.
Os chamados tempos mortos, constantes em seus filmes, se intensificam com a presença de espaços vazios, modo de explicitar a situação de crise vivida por seus personagens.
A desaparição da protagonista de "A Aventura", a perambulação de Jeanne Moreau em terrenos baldios em "A Noite" e as imagens urbanas desertas em "O Eclipse" são todos signos do mal-estar moderno: o do indivíduo burguês, que, mesmo mergulhado no conforto, na elegância ou nas distrações da sociedade de consumo, não consegue mais reencontrar sua alma ou algo equivalente que o preencha de sentido.

Obsessão pelo deserto
Esse processo de esvaziamento se consolida ainda mais na fase seguinte da obra de Antonioni, quando a obsessão pelo deserto é reiterada como tema ou cenário simbólico em filmes como "Deserto Vermelho", "Zabriskie Pont" e "Passageiro: Profissão Repórter".
Nesses trabalhos, Antonioni ressignificou, aos nossos olhos, o termo "niilismo", essa "vontade de nada/nada da vontade" da qual as gerações Prozac/ecstasy que vieram em seguida continuam tentando escapar.
Por isso, não soa exagerada a definição de Glauber ao escrever que "no século 19, Michelangelo seria filósofo como Hegel e talvez tivesse a mesma importância para o mundo de então como teve o filósofo. Hoje, substituindo a linguagem escrita pela imagem & som, Michelangelo usa o cinema como instrumento de especulação ao mesmo tempo em que funda, no filme, o estilo de sua moral".
Morto o artista, sua obra prossegue viva, contaminando, pelo modo de representar, o olhar de outros cineastas. Todo o Wim Wenders dos anos 70 atesta essa herança, depois transferida para parte do cinema oriental, na obra de diretores como os chineses Wong Kar-wai e Jia Zhang-ke, além de Tsai Ming-liang, de Taiwan.
Nesses vínculos, não é tanto a referência consagrada que importa e, sim, a necessidade de mostrar que o homem moderno pode estar morto com o século 20, mas nosso mal-estar no mundo não se prende a mudanças do calendário.

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