quinta-feira, novembro 30, 2006

Dia mundial da luta contra a AIDS








Símbolo mundial da luta contra a Aids é colocado em frente ao Congresso, em Brasília.

Dia mundial da luta contra a AIDS
. Não vamos deixar esta praga disseminar-se mais.







Aproveitando o gancho do Contardo de ontem:

Que os deuses nos protejam e aos nossos deste mal. Amém.
Ou 'Nam-myoho-rengue-kyo'.

Betty, obrigada pela fitinha. :)


Um texto comovente:

O dia da cura

Herbet de Souza

Foi numa manhã comum, como qualquer outra, que abri o jornal e li a manchete: “Descoberta da cura da aids!”. A princípio, fiquei deslocado na cama como se a terra tivesse saído do lugar e meu quarto estivesse mais à esquerda que de costume.

Fiquei parado um tempo sem saber qual deveria ser o primeiro ato de uma pessoa de novo condenada a viver. Primeiro certificar-se. Telefonei para o meu médico.

Realmente a notícia era sólida, e o próprio Bush estava dando declarações na TV americana, assumindo a veracidade do fato: dez pacientes em estado avançado da doença haviam tomado o CD2 e não apresentavam nenhum sinal ou sintoma da presença do vírus em seu organismo. Um eficiente viricida fora descoberto.

As outras notícias seguiam o mesmo curso. O laboratório do CD2 tivera uma espetacular alta na bolsa de Nova Iorque. Na França, o Instituto Pasteur dizia que outra coincidência acompanhava os caprichos da ciência. Ali, também o SD2 estava no forno para ser anunciado.

Telefonei para o meu analista, dei a notícia sobre a cura da aids e decidi que só iria enfrentar a felicidade nas próximas sessões. Afinal, eu havia me preparado tanto para a morte que a vida agora era um problema.

Ao meu lado Maria ainda dormia e não sabia que nossa vida havia mudado. Casados há 21 anos, os últimos tinham sido um tempo de tensão a cada gripe, mancha na pele, febre sem explicação. O amor que havíamos feito tanto tempo, e que havia sido interrompido pelo medo do contágio, dos descuidos, do imponderável, estava agora ao alcance da vida comum – num milagre, apesar de meus 56 anos, como costuma insistir um certo jornal paulista.

Pensei comigo mesmo, “camisinhas nunca mais?”. Maria dormia, ainda não sabia da novidade. Ela agora poderia ser viúva de outras causas mais banais, mais correntes, mas normais. Ela não mais seria a viúva da aids. Grandes avanços. Tinha os filhos para avisar. Não mais seriam órfãos da aids, o pai agora tinha algo de imortal, ou melhor, podia morrer como todos os mortais.

A TV continuava a mostrar cenas incríveis em Nova Iorque, e o meu telefone já começava a tocar. Afinal, eu havida sido, durante quase dez anos, o entrevistado perfeito para o caso da aids: era hemofílico, contaminado e sociólogo. Podia desempenhar três papéis num só tempo e numa só pessoa. Eu era uma espécie de trindade aidética! Iam querer saber o que eu sentia, o que faria, meus primeiros atos, minhas emoções, minhas reações diante da vida e da normalidade. Imaginava as perguntas. “Como você se sente agora que é de novo um ser normal? O que vai fazer agora de sua vida? O que efetivamente mudou na sua vida? O que você aprendeu com a aids? Você continua a ter raiva do governo?” Cheguei a pensar, como Chico Buarque, que daria minha primeira entrevista ao Jô Soares. Afinal, falaria da vida tomando cerveja!

Ainda na cama, onde de manhã gosto de ficar, tive saudades do Henfil e do Chico e, em meio à alegria que já me contagiava, chorei. Por que haviam sofrido tanto e morrido tão fora de hora? Quanto sofrimento, quanta dor inútil que as palavras não descrevem. O olhar parado de quem expira. A máscara terrível de quem morre da peste do século. O abandono sem remédio. A fatalidade que nem a morte enterra.

Por que haviam logo eles morrido, se eram meus irmãos, a quem telefonava com o hábito de quem acredita poder fazer isso por séculos e séculos seguidos? De repente, ninguém do outro lado da linha. Números riscados numa agenda sem remédio. Ainda a lembrança do Chico, no enterro do Henfil, dizendo para mim entre espanto e humor: “Hoje é o Henfil, amanhã serei eu e você irá daqui a três anos... bem, digamos cinco!”.

E hoje estou eu aqui passados quatro anos, quase cinco, lendo essa notícia, e eles todos mortos antes do tempo. Não há remédio para a morte de meus irmãos, que são tantos.

De repente me dou conta de que houve realmente remédio para a aids. É hora de levantar, atender os telefonemas, reunir o pessoal da Abia, festejar com o pessoal do Ibase, abrir um champanhe ou uma cerveja. Telefonar para saber onde estava o tal remédio, como comprá-lo, qual o preço, o prazo da chegada. Estaria disponível quando, a que preço? Quem poderia comprá-lo?

O mais importante, no entanto, acontecia no paralelo. Amigos e amigas, de quem não suspeitava, me chamavam para dizer que eles também eram soropositivos, agora que havia cura. Outros me davam abraços pelo telefone e comunicavam que estavam indo diretamente a centros de saúde para fazer o teste, agora que havia cura. Outros e outras diziam que suas vidas sexuais eram um caos, mas que agora valia a pena encarar e se cuidar, porque agora havia cura. Alguns outros me chamavam para dizer que iriam começar o tratamento e o controle e a pensar na vida, porque agora havia cura. E finalmente outros me diziam que agora podiam revelar à imprensa sua condição de soropositivos para servir de exemplo a outros, agora que havia cura.

De repente me dei conta de que tudo havia mudado porque havia a idéia e o anúncio da cura. Que a idéia da morte inevitável paralisa. Que a idéia da vida mobiliza... mesmo que a morte seja inevitável, como todos sabemos. Acordar pensando que se vai morrer, no lugar da vida, é a própria morte instalada.

De repente me dei conta de que a cura da aids sempre havia existido, como possibilidade, antes mesmo de existir como anúncio do fato acontecido, e que o seu nome era vida.

Foi de repente, como tudo acontece.

Texto publicado no Jornal do Brasil, em janeiro de 1992. Republicado em www.conversascombetinho.org.br/
Copiei daqui.

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