quarta-feira, janeiro 04, 2006

Mini conto. O dez de copas.

Cai chuva fina há três dias, o dia está quente, úmido.
Espera o ônibus com ar refrigerado do outro lado da rua na Praça-passa a cada 20 minutos. A chuva molha os sapatos, detesta chuva nos pés, detesta sair na chuva, queria estar em casa, mas precisa comprar linhas no centro da cidade, não dá para adiar mais, com o feriado atrasou todas as encomendas.
Quando entra no ônibus, atrapalhada como sempre com o guarda chuva, vê o homem estrangeiro, seu coração acelera, e agora? Fica confusa, dá uma olhada no ônibus todo, parece cheio, senta apressada dobrando o guarda chuva atrás do homem, em diagonal, suspira fundo. Ele a olha indiferente.
Depois de colocar o guarda chuva no chão consegue ver melhor, pode vê-lo bem de perto, está de roupa azul, tem nas mãos uma revista ‘Time’ com um negro na capa, folheia a revista, anota algo num papel. Tem no colo um envelope grande, destes de exames médicos, não consegue ver o que diz no envelope, queria saber mais dele. Tenta adivinhar, olha os cabelos grisalhos, o pescoço, deve ser mais velho que ela, pouco mais, parece mais vivido, mais cansado, assusta-se ao pensar que pode estar doente, não, não...
Tem mãos grandes. Lembra do jogo de Tarot que tirou ontem- Dez de copas- o amor pleno. Imagina aquelas mãos tocando o seu rosto suave, examinando seus traços de mulher madura, os olhos, o nariz, a boca bem delineada, os sulcos depressivos- lembra da mãe dizendo com voz firme: “Estes traços você herdou de nossa família”, ficou sem rugas, mas com as marcas da dor.
Os olhos se enchem de lágrimas, sente-se tola a sonhar com um desconhecido, sina mais triste a sua... As lágrimas descem pelo rosto, procura um lenço na bolsa, vê o homem se levantar em direção a porta do ônibus que pára, tenta olhar pela janela para ver se consegue ver onde ele desceu, as lágrimas não deixam, vê apenas sua imagem refletida no vidro, a imagem de mulher sofrida, envelhecida, amarga.

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