segunda-feira, novembro 28, 2005
Luiz Fernando Veríssimo.
O Suicida e o Computador
Luis Fernando Veríssimo
Depois de fazer o laço da forca e colocar uma cadeira
embaixo, o escritor sentou-se atrás da sua mesa de
trabalho, ligou o computador e digitou:
"No fundo, no fundo, os escritores passam o tempo todo
redigindo a sua nota de suicida. Os que se suicidam
mesmo são os que a terminam mais cedo."
Levantou-se, subiu na cadeira sob a forca e colocou a
forca no pescoço. Depois retirou a forca do pescoço,
desceu da cadeira, voltou ao computador e apagou o
segundo "no fundo". Ficava mais enxuto. Mais
categórico. Releu a nota e achou que estava curta.
Pensou um pouco, depois acrescentou:
"Há os que se suicidam antes de escapar da terrível
agonia de encontrar um final para a nota. O suicidio
substitui o final. O suicídio é o final."
Levantou-se, subiu na cadeira, colocou a forca no
pescoço e ficou pensando. Lembrou-se de uma frase de
Borges. Encaixa, pensou, retirando a corda do pescoço,
descendo da cadeira e voltando ao computador. Digitou:
"Borges disse que o escritor publica seus livros para
livrar-se deles, senão passaria o resto da vida
reescrevendo-os. O suicídio substitui a publicação. O
suicídio é a publicação. No caso, o livro livra-se do
escritor."
Levantou-se, subiu na cadeira, mas desceu da cadeira
antes de colocar a forca no pescoço. Lembrara-se de
outra coisa. Voltou ao computador e, entre o penúltimo
e o último parágrafo, inseriu:
"Há escritores que escrevem um grande livro, ou uma
grande nota de suicida, e depois nunca mais conseguem
escrever outro. Atribuem a um bloqueio, ao medo do
fracasso. Não é nada disso. É que escreveram a nota,
mas esqueceram-se de se suicidar. Passam o resto da
vida sabendo que faltou alguma coisa na sua obra e não
sabendo o que é. Faltou o suicídio."
Levantou-se, ficou olhando a tela do computador,
depois sentou-se de novo. Digitou:
"No fundo, no fundo, a agonia é saber quando se
terminou. Há os que não sabem quando chegaram ao final
da sua nota de suicida. Geralmente, são escritores de
uma obra extensa. A crítica elogia sua prolixidade, a
sua experimentação com formas diversas. Não sabe que
ele não consegue é terminar a nota."
Desta vez não se levantou. Ficou olhando para a tela,
pensando. Depois acrescentou:
"É claro que o computador agravou a agonia. Talvez uma
nota de suicida definitiva só possa ser manuscrita ou
datilografada à moda antiga, quando o medo de borrar o
papel com correções e deixar uma impressão de desleixo
para a posteridade leva o autor a ser preciso e
sucinto. Tese: é impossível escrever uma nota de
suicida num computador."
Era isso ? Ele releu o que tinha escrito. Apagou o
segundo "no fundo". Era isso. Por via das dúvidas,
guardou o texto na memória do computador. No dia
seguinte o revisaria.
E foi dormir.
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