quinta-feira, outubro 20, 2005

O ÚLTIMO TANGO EM PARIS

Eu escrevi nos comentários que "O último tango em Paris" era um filme sobre a morte, a solidão, o desemparo e a Regina colocou este artigo de Carlos Gerbase, está muito bom.Quanto ao erotismo, existe sim, mas está ligado à morte, ao desespero, são pessoas que vivem no limite da solidão, da dor. Um homem herege, uma mulher que não tem nada para perder. Não tem nada a ver com sacanagem, longe disto.
Para mim um dos melhores filmes que vi.
Leiam, é um bom texto.

O ÚLTIMO TANGO EM PARIS

de Bernardo Bertolucci

Filmes proibidos pela censura costumam ser lembrados muito mais pela polêmica que causaram que por suas qualidades artísticas. Assim, para as novas gerações, é possível que "O último tango em Paris" resuma-se à famosa cena da manteiga, comentadíssima à época em que brasileiros sortudos voltavam das férias do exterior e contavam aos demais que, realmente, Marlon Brando usava um tablete de manteiga para fazer coisas impensáveis com Maria Schneider. E Bertolucci, cineasta preocupado em desvendar alguns cantos escondidos da alma humana, ficou famoso como suposto pornógrafo iconoclasta e chique, embalando sacanagens proibidas ao som da trilha "caliente" de Gato Barbieri.

Recentemente, a Folha de S.Paulo publicou uma entrevista (seguida de matéria bastante reacionária) com Maria Schneider, em que a atriz atribui os vários problemas de sua vida pessoal - basicamente: drogas demais e gordura demais - à sua inocência perdida durante as filmagens de "O último tango". Não quero - nem tenho informações suficientes - para entrar no mérito da questão, mas o simples fato da atriz ressaltar, mais uma vez, os aspectos sexuais do filme certamente contribui para reforçar essa falsa imagem de "O último tango em Paris" como um filme erótico. Tá na hora de colocar as coisas nos seus devidos lugares (e nem precisa manteiga).

"O último tango em Paris" não é um filme erótico. É, como todos os filmes intimistas de Bertolucci, uma tentativa de falar abertamente sobre coisas que a sociedade prefere ver trancadas a sete chaves. Dois desconhecidos encontram-se num apartamento vazio e, sem dizerem os nomes, conversam, transam, brigam e procuram um sentido para suas vidas. Ele (Marlon Brando, em atuação digna de 20 Oscars) está em crise porque a mulher acaba de cometer suicídio, sem deixar qualquer explicação. Ela (Maria Schneider, limitada, mas convincente) está em crise porque não sabe se o futuro que deseja para si é um casamento com um jovem cineasta. Para ele, o mundo acabou; para ela, está começando. Para ele, as coisas perderam o sentido; para ela, os sentidos ainda são muito complicados. Entre estes dois seres tão diferentes, há apenas uma ponte: o sexo.

Apenas um débil mental não percebe que as cenas "polêmicas" filmadas por Bertolucci, bastante explícitas para a época, são fundamentais para que o espectador compreenda o tipo de relacionamento possível para aquele casal tão improvável. E poucos lembram o que Marlon Brando fala durante a cena da manteiga: "Vou falar-lhe de segredos de famíla, essa sagrada instituição que pretende incutir virtude em selvagens. Repita o que vou dizer: sagrada família, teto de bons cidadãos. Diga! As crianças são torturadas até mentirem. A vontade é esmagada pela repressão. A liberdade é assassinada pelo egoísmo. Família, porra de família!" É como se um professor, que não acreditasse mais em nada do que ensinou a vida inteira, tentasse dar uma última aula - verdadeira, desesperada e muito dolorida. E à aluna, subjugada, só restasse perder toda a inocência. Inocentes podem ser felizes, é claro, mas não em filmes como este. Inocentes têm nome, sobrenome, RG, CPF e família constituída. Os personagens de "O último tango" não têm nem um nome um para o outro.

A cena em que Brando fala com o cadáver de sua esposa no velório, alternando momentos de raiva, desorientação e, finalmente, terrível reconciliação consigo mesmo, merece estar em qualquer antologia dos grandes momentos da arte interpretativa deste século. Ele também foi gigante em "O poderoso chefão" e "Apocalypse now", mas aqui sua força nasce das entranhas de um personagem esmagado, sem qualquer glamour ou simpatia. Brando vai para o trono ou não vai? Claro que vai, junto com Bertolucci, que não poupa nem seus colegas cineastas, pintando o retrato patético de um diretor "genial", que pensa estar fazendo uma revolução a cada plano rodado. Do roteiro à montagem, passando pelos eficientes movimentos de câmara (marca registrada de Bertolucci) e pela trilha - pop mas sempre dramática - tudo está a serviço de uma visão de mundo sombria, mas assustadoramente realista.

"O último tango em Paris" merece ser revisto (ou redescoberto) em vídeo, antes que a sua fama pseudo-escandalosa roube de vez sua verdadeira beleza. Bertolucci voltaria ao tema em outra obra-prima - "O céu que nos protege" - igualmente impactante, mas desta vez rodado em grandes espaços, em vez de confinado às quatro paredes de um apartamento vazio. E, pensando bem, que diferença faz? Onde quer que esteja, com quem quer que ande, com o sol abrasador ou uma lua gelada sobre a cabeça, o homem é um solitário à procura dele mesmo, sussurrando e clamando por um sentido para todos os absurdos que encontra pelo caminho. Bertolucci, capaz de contar histórias monumentais e pintar afrescos políticos, como "O último imperador" e "1900", sabe que estes sussurros e estes clamores solitários ainda são a melhor matéria-prima para o bom cinema.

LEIA MAIS: Bernardo Bertolucci

Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e Fausto) e atualmente prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado "Tolerância".

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