Texto da Folha de São Paulo de 2012
Americana, que se matou aos 22, ficou conhecida por seus autorretratos de cunho romântico e surreal
DE SÃO PAULO
SILAS MARTÍ
Quando tinha 22 anos, Francesca Woodman se jogou do alto de um prédio em Nova York.
Seu corpo, desfigurado, só foi identificado pelas roupas que vestia no dia.
Talvez seja um clichê narrar a vida dessa artista partindo do fim, o suicídio em 1981 que instaurou o mito em torno de sua obra. Mas o episódio acabou virando uma espécie de moldura de sua produção fotográfica visceral.
Encerrada há duas semanas no Guggenheim*, em Nova York, a maior retrospectiva já dedicada à artista americana tem agora um recorte contundente na galeria Mendes Wood, em São Paulo.
Woodman arquitetou durante a adolescência seus autorretratos, que quase sempre deixavam o rosto para fora do quadro, focando em seios e pernas, metonímias do corpo feminino que oscilam entre o erótico e o pueril.
Suas imagens parecem emular uma tradição vitoriana, de pegada conservadora, às vezes quase pudica, ao mesmo tempo em que flertam com a crueza do surrealismo.
No momento em que Ana Mendieta, que também morreu caindo de um arranha-céu, fazia sua obra feminista, de forte cunho experimental, e Cindy Sherman começava sua série de autorretratos travestidos, Woodman olhava para trás, num resgate de tradições pictóricas refundadas à luz da própria rebeldia.
Não por acaso, o "New York Times" a descreveu em recente artigo como a versão feminina de Holden Caufield, o adolescente amargurado protagonista de "O Apanhador no Campo de Centeio".
"Ela representa uma tradição de desajustados", diz Matthew Wood, curador da mostra e sócio da Mendes Wood. "É uma resistência contra a cultura da conformidade, dos shoppings, desse puritanismo americano."
VOZ INDEPENDENTE
Mas Woodman resistiu também a se enquadrar nas pesquisas de seus contemporâneos. Suas fotografias quadradas, em preto e branco, destoam das experimentações setentistas e resgatam questões primordiais da fotografia, como a captura do movimento e estratégias de composição, ao mesmo tempo em que se esforçam para instaurar ambientes de exceção.
Ela aparece suja de tinta, enlameada ou em poses que lembram a morte, uma crucificação ou o sono pesado depois de uma noite de amor.
Embora seja muitas vezes tétrico esse universo, aquele de uma mulher frágil, acuada entre pontas e arestas de seus mitos inventados, há uma vitalidade pulsante nas imagens, o que Wood chama de "voz independente e avassaladora", quase um prenúncio do suicídio da artista.
"Sua morte parece ter feito parte da obra, está implícita", opina Wood. "Olhamos para a obra dela como algo resolvido, mas ela era uma estudante e ao mesmo tempo um mestre, como Romeu e Julieta que eram amadores e ao mesmo tempo mestres no amor, também muito jovens."
Dessa mesma fragilidade, Woodman constrói o que muitos viram como a dimensão feminista de sua obra. Mas é algo que passa ao largo de militância ou protesto.
"Feminismo de verdade é ser mulher, assumir as dimensões disso", diz Wood. "Ela não consagra uma tradição, mas se superou na habilidade de se retratar. Ela mostra a mulher em movimento."
Autorretrato- uma das raras fotos em que mostra o rosto
PS: Muitos a comparam com Diane Arbus, que fazia fotos excêntricas, com visão crítica do mundo. Também teve fim trágico- suicídio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário