domingo, julho 18, 2010

"Se eu fosse um homem só..."





17.7.2010

Conversando com Vinicius

José Castello

Vinicius de Moraes _ que morreu há trinta anos, deitado em sua banheira, como um Marat apunhalado por si mesmo _ acreditava em fantasmas. Nunca acreditei em fantasmas, mas creio que eles são uma excelente companhia para as horas de solidão. Nunca acreditei, mas cultivo meus fantasmas de estimação. Um deles se chama Vinicius de Moraes.

Passo muitas horas sozinho. Muitas vezes, não me sobra tempo para mais nada. Nos últimos dias, leitores reclamaram, com razão, de minha ausência neste blog. A responsável por isso é minha solidão, que me arrastou para rascunhos e leituras, me levou a me perder dentro de mim. É claro, sou responsável por minha solidão. Portanto: o responsável por minha ausência sou eu mesmo. Então me perdoem.

Mas já me perdi de novo _ e perder-se é um dos efeitos mais ferozes da solidão. Volto a Vinicius. No início dos anos 1990, durante os três anos em que trabalhei na pesquisa de "O poeta da paixão", biografia que escrevi por incentivo de Luiz Schwarcz, tive sempre Vinicius a meu lado. Não creio em fantasmas, tampouco acredito na vida após a morte. Nada disso me impediu de acreditar que o espírito de Vinicius estava sempre perto de mim.

Conversei com ele nas horas mais difíceis. Trocamos muitas ideias sobre sua vida, tivemos algumas discussões ríspidas, na maior parte das vezes sua presença silenciosa me consolou. Não acredito em fantasmas, mas conheço o poder da imaginação. Para Vinicius, a poesia se derramava para fora dos livros, se espalhava pelo mundo e se impregnava no real. Aprendi com ele que a literatura, de fato, tem um poder que ultrapassa os gêneros, as convenções e a própria linguagem. Que a literatura ultrapassa a literatura.

Por isso, durante o difícil período em que pesquisei a vida de Vinicius de Moraes _ eu, a quem o destino reservou o fardo de ser seu primeiro biógrafo _ decidi, imaginei, inventei que o fantasma do poeta estava sempre a meu lado. Não é fácil escrever a primeira biografia de um morto. Tudo o que você disser, tudo o que escrever, tudo o que sugerir passa a ser, para a maioria das pessoas, a absoluta verdade. O mais grave: o biografado não está mais aqui para desmentir. Não pode se defender. Você diz, e ninguém responde. Tudo o que um escritor tem, sempre, é o silêncio.

Passei muitas noites em claro. Tive pesadelos desagradáveis, em que Vinicius me destratava, me agredia fisicamente, me esmurrava. Em um deles, o poeta chegou a me atacar com uma faca. Lembrei-me de Marat, o revolucionário francês, que morreu com
uma faca atravessada no coração. Marat, que foi assassinado em sua banheira, me
fez lembrar de Vinicius, que morreu durante uma madrugada, depois de passar a noite compondo com Toquinho. Morreu enquanto descansava em sua banheira de espumas,
leito impecável para o poeta do transitório.

Pobre Vinicius, grande Vinicius, o poeta que, quando eu tinha dez ou onze anos de idade, em sua primeira "Antologia poética", me ensinou o que é a poesia. Foi um susto.
Enquanto lia seus versos, eu me afogava nas palavras. Como aquilo podia existir? O que eram aquelas palavras que me enlaçavam e me arremessavam para tão longe? Agora que se completam trinta anos de sua morte, sou chamado, novamente, a falar de Vinicius de Moraes. Converso com Edney Silvestre, com Ancelmo Goes. Amigos apaixonados pelo poeta, como Silvio Barsetti, Paulo Marcelo Sampaio e Timoteo Lopes, me levam a falar mais e mais dele. Um livro nunca termina.

Se eu contar os dois anos em que pesquisei seus inéditos em busca do material que formaria o "Livro de letras" e o "Roteiro lírico e sentimental do Rio de Janeiro", foram quase cinco anos mergulhado em sua obra. Pensando em Vinicius a maior parte do dia. Conversando com Vinicius _ esse fantasma homônimo que inventei para me fazer companhia. Mesmo um biógrafo precisa da ajuda da ficção. Sem inventar esse Vinicius que me acompanhou e me escoltou, que me empurrou e me consolou, eu não teria escrito a biografia. Sem inventar um Vinicius falso eu não conseguiria me aproximar um pouco (só um pouco) do Vinicius verdadeiro. Vá se entender nossa cabeça!

Quando terminei o livro, e me preparava para entregá-lo a Luiz Schwarcz, me veio uma ideia. Ela surgiu depois do pesadelo em que Vinicius, com uma faca de jardineiro, me atacava. Pensei em levar os originais ao cemitério e depositá-los sobre o túmulo do poeta. Teríamos uma conversa franca. Eu lhe diria: _ Aqui está, foi o que consegui fazer. Certamente errei muito. Creio que fracassei mais do que acertei. Mas lutei todo o tempo para ser fiel a você. Está aqui, é o que fiz. Quero que você me diga se devo entregar ou rasgar.

Não precisei ir ao cemitério, vivi essa cena em silêncio, na penumbra de meu quarto. Como agora, em meu escritório, eu a revivo mais uma vez. Vinicius continua perto de mim. Creio que respondeu que sim, que eu devia entregar o livro à editora, tanto que o entreguei. Sei que continua a meu lado, porque volto a escrever sobre ele e me acolhe com seu silêncio. Aprendi a conversar e a ouvir esse homem que não mais existe. Só não me internam em um asilo porque consigo fazer os dois movimentos: deliro com Vinicius, vou até seus braços, converso com ele, mas sei a hora de voltar. E o principal: volto.

Publiquei meu livro há dezessete anos. Há dezessete anos sou chamado para falar e falar sobre Vinicius de Moraes. Uma coisa ainda me assusta: as pessoas tomam o que digo como a límpida expressão da verdade. Não, não falsifiquei uma só linha, tudo o que escrevi é resultado do que ouvi, do que li, do que pesquisei. Mas não acredito na verdade, pelo menos não na verdade límpida e clara dos ingênuos e dos crentes. A verdade é complexa, não cabe dentro da própria verdade. É insuficiente, não dá conta do real. É móvel, ora está aqui, ora ali, nunca se deixa pegar. Tudo o que podemos fazer é roçar sua face. Com medo (Cortázar) e delicadeza (Vinicius), rocei a face barbada do poeta. E isso é tudo.

Ei, Vinicius, você aqui a meu lado, você mesmo. Não o homem Vinicius de Moraes, que está morto e não existe mais. Mas você, esse fantasma de Vinicius que nós, seus leitores, cultuamos. Não como um santo _ no máximo, como um santo sujo, para usar a
expressão genial de Humberto Werneck a respeito de Jayme Ovalle. Vai, Vinicius. Me ajuda a responder as perguntas que me fazem. Me dá coragem. E sobretudo me perdoa. Sim: estou pedindo perdão. Dirão: você é inseguro, permite que a culpa o massace, reaja! É muito simples renegar a culpa. É muito mais simples ser "saudável". Porém, sem um pouco de culpa, o que chegamos a fazer? Nada.

Que peso se transformar no narrador de uma vida! É um peso que ninguém suporta, que no máximo se arrasta. Em Friburgo, ontem à noite, dividi uma mesa de debates com Italo Moriconi. O tema que nos propuseram: a literatura cult. Italo, como sempre, foi preciso: mostrou que a ideia de uma literatura cult se define, antes de tudo, pela presença de um culto. De alguma forma, cultuamos os escritores que amamos. Isso é bom? É ruím? É humano. Precisamos desses fastasmas que nos consolam e amparam. Se você acha que não precisa, tudo bem; eu preciso.

Talvez _ como me disse uma vez João Gilberto Noll _ a literatura não passe de uma forma delicada de religião. Uma religião decaída, instável e coberta de sangue, com santos impuros e incrédulos, que odeiam os dogmas e repudiam as verdades reveladas. A literatura, Vinicius me mostrou, lida com o impuro _ leiam a "Carta aos puros"! Trabalha com o fracasso e com os restos. Há, sim, uma gota de sangue em cada poema, como o jovem Mário de Andrade conseguiu ver. Ele publicou seu primeiro livro aos 24 anos de idade e sob pseudônimo. Mário Sobral, preferiu assinar. O jovem Mário conseguiu ver o sangue, nele mergulhou seus versos, mas precisou se esconder sob um nome falso. Não suportou o que viu. Já era um grande poeta: não suportou o que era. Nao conseguiu assinar seu nome. Nâo é fácil assinar com um fio de sangue.

A meu lado, Vinicius ri. Dá imensas gargalhadas. "Vamos, relaxe!", me diz. "Tudo isso já passou!" Dezessete anos depois da publicação de meu livro, ele continua, porém, perto de mim. Nunca me abandonou. Jamais renegou, também, o que escreveu. Nem mesmo seus poemas metafísicos, escritos na juventude, sob a pressão de inúteis torturas espirituais. Sabia que, dentro de um poeta, existem sempre muitos poetas. Dentro de um homem, existem sempre muitos homens. Em voz baixa, ele se aproxima para repetir uma velha piadinha: "Se eu fosse um homem só, não me chamava Vinicius de Moraes, me chamava Vinicio de Moral".

Daqui.

2 comentários:

Anônimo disse...

Conheci pessoalmente! Um figura!

angela disse...

Adorei ler o depoimento dele.
beijos