quinta-feira, julho 29, 2010

Conto: Fragmentos






Na janela
                                                                                    
Menina paralisada, atrás do vidro, sofria.
Agora, abro o vidro. Jogo-me alada .



 A palavra

 “Coisa de prostituta! Faz engravidar!”. Ressoa nela a voz aguda da mãe.
Aos sete anos, mal entendia a fúria da mãe. Sentada de castigo na mesinha de cabeceira- pernas soltas no ar- chorava. Pouco depois seguiram para outra cidade.
Não virou puta. Do ventre, antes seco, pariu um dia um filho bastardo, num aborteiro. Sentiu alívio.


Confissão

Menina, uniforme azul e branco, sapatos apertados de verniz, atravessava a praça. A freira puxava a fila indiana de meninas silenciosas - olhos no chão.
“Eu pecador me confesso, eu pecador me confesso...”, ecoava em sua mente. Segurando o riso, contava os passos olhando a perna torta da menina da frente.
- Padre, quero me confessar.
- Quais os seus pecados, minha filha?
- Tive maus pensamentos.
 Urgia rezar mais.



O pai

Quando o pai mandou, aos gritos, que se vestissem e pegassem as roupas todas, ela não entendeu o que acontecia.
Caminharam em silêncio até o ônibus. A mãe chorava baixinho, cabeça baixa, mãos ocupadas por sacolas cheias.
Menina ainda, segurou firme a mão do irmão.
Desceram da condução com o pai quase os empurrando.
Na porta, o avô disse:
- Te entreguei um, você volta e são três. Fico com minha filha, você leva as crianças.
O pai responde:
 - Se não os quer, então os mate.
É a última lembrança que tem do pai.




Embaçado

No banheiro embaçado minha mãe me banhou. Esfregava meu corpo franzino com força. Chorava sem parar. "Lave bem aí embaixo, senão fica com mau cheiro", disse me entregando uma bucha. Esfreguei até doer. Chorei sob a água até ela me gritar: Saia dai, menina! Chega!

A primeira vez que fui para a cama com um homem, diante da minha dor, ele disse: "Precisa ir a um médico, está machucada, não é normal".
Em casa, tomei coragem e me olhei com um espelho. Desde então gosto de me tocar. 
Minha mãe me odiaria se me visse com um homem. Gosto de homens, deixo que me conduzam. Fecho os olhos e deixo que me amem.


No magazine

Fica encantada ao se ver no espelho com o vestido da loja.
Dança até cansar.
Com uma tesoura faz pequenos cortes nas roupas penduradas.
Ao bater a porta, sabia que não haveria retorno.


O jantar

Dormia quando ele chegou de madrugada. Da porta, disse: Anda, tenho fome. Sonada, levantou. Encheu a panela com água, colocou no fogão e voltou a cochilar enquanto fervia.
Ele a viu de bruços na mesa, pegou a lata de óleo e a despejou sobre sua cabeça.
- Sua vaca, levante!
Ela obedeceu em silêncio. Chorando baixinho entrou no chuveiro quente. Lembrou da mãe. Chorou, mais ainda. Levou tempo para tirar o óleo, o ódio e o medo.
Quando saiu, ele já havia comido. Estava à sua espera, pronto.
Acordou às quatro, ele ressonava de boca aberta. “Desgraçado”.
Antes das cinco estava pronta. Mochila segurando a porta da rua entreaberta. Faca na mão.
 Ela saiu de óculos escuros- amanhecia.                       

PS: Este conto eu enviei para o concurso OffFLIP, li hoje o resultado, vários premiados-acho que dez-, eu nada. Não sei porque não desisto, insisto em tentar. Acho que meus contos não são estruturados como o convencional, nunca serão aceitos. A ironia é que no primeiro concurso que concorri, eu entrei- naquele site italiano de literatura- DOMIST- escolheram três e eu estava lá, em italiano e português(agora não está mais online). 
Enfin, c'est la vie. Alguém perde, alguém ganha. Ainda não fui eu. 
Se  você gostou deste conto, me diga, se não gostou diga o que não gostou- sou toda ouvidos:)


Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei! Se me permite uma sugestão:

"Levou tempo para tirar o óleo, o ódio e o medo."

Levou tempo para tirar o óleo, o ódio demorou ainda mais, mas pior foi o medo, que insistia em não sair.