Picasso
Depressão e terapia
Contardo Calligaris
Quem está no desespero, antes de qualquer consolação, pede que sua dor seja reconhecida
Um dia, ao acordar, um conhecido meu encontrou sua mulher morta, ao seu lado, na cama. À dor de perder sua amada juntou-se o choque de descobri-la já fria e a culpa atormentada por ter dormido na hora em que ela morria.
No velório, muitos amigos e parentes tinham as mesmas palavras de consolação: "Ao menos, ela não sofreu", "É o melhor jeito de morrer...".
Outro conhecido, anos atrás, na Flórida, perdeu sua casa e tudo o que ela continha, num tornado. Alguns dias depois, seus pais foram visitá-lo e confortá-lo; enquanto ele contemplava, com eles, os escombros de sua existência, a mãe disse: "Pelo menos você está são e salvo". E o pai: "Ainda bem que você tem seguro".
São exemplos de "reavaliações" -é assim que a psicologia chama as tentativas, diante de uma catástrofe, de encontrar razões para suavizar o sofrimento do sujeito.
Suspeito que, freqüentemente, as reavaliações facilitem sobretudo a vida de quem as sugere, ou seja, dos amigos e parentes que não estão muito a fim de se debruçar sobre o desespero de quem perdeu seu amor ou suas coisas.
Eles se saem da embaraçosa situação de oferecer pêsames graças a um achado otimista: "Pense bem, no horror, você teve sorte".
De fato, essas intervenções são quase intoleráveis para os sujeitos que elas deveriam beneficiar. Para quem sofre, só fica uma impressão de escárnio: os outros sequer reconhecem o tamanho de sua perda, de seu dano e de seu luto.
Há especialistas em perdas, danos e luto; são os psicólogos treinados para oferecer assistência imediata às vítimas e aos próximos das vítimas de calamidades (acidentes aéreos, desmoronamentos de túneis do metrô, inundações etc). No Brasil, conheço o Quatro Estações, um instituto que treina e disponibiliza uma rede de psicólogos capazes de prestar assistência urgente em todo o território nacional, ou quase.
Nos EUA, a própria Cruz Vermelha oferece um treinamento específico que qualifica os psicólogos e psicoterapeutas que ela mobiliza em caso de catástrofe. Pois bem, os especialistas em luto são, em princípio, unânimes: quem está no desespero, antes de qualquer consolação, pede que sua perda e sua dor sejam RECONHECIDAS e só depois, eventualmente, suavizadas.
Essa unanimidade encontrou recentemente uma espécie de confirmação experimental indireta. O "Journal of Neuroscience" publicou, em 15 de agosto 2007, uma interessante pesquisa de Tom Johnstone e outros. Foram constituídos dois grupos, um de 21 sujeitos diagnosticados como depressivos graves e um grupo de controle de 18 sujeitos (obviamente, não depressivos). A atividade cerebral de todos os sujeitos foi monitorada por ressonância magnética funcional enquanto lhes era mostrada uma série de imagens, boa parte das quais foram concebidas para produzir preocupação, medo, desespero e tristeza.
Os sujeitos eram também convidados a reavaliar essas imagens deprimentes, ou seja, a reinterpretá-las de maneira a suavizar ou mudar seu impacto negativo.
Deixo de lado a complexa descrição da atividade cerebral constatada nos dois grupos durante a experiência. O que importa aqui é a constatação final: os sujeitos deprimidos, aparentemente, tiveram a maior dificuldade em reavaliar as imagens negativas. Pior, a tarefa de reavaliação que lhes era pedida parecia deprimi-los ainda mais.
É possível imaginar que esta seja uma propriedade dos quadros depressivos: uma incapacidade de reavaliar positivamente o que acontece de negativo. Mas é também possível que a depressão seja aqui apenas um fator, que torna mais aguda a propensão ao desespero e impede de discriminar entre imagens e eventos aflitivos.
Seja como for, a experiência confirma o que já sabíamos: quando alguém sofre, a primeira tarefa dos próximos (e dos profissionais) não é a de consolá-lo sugerindo reavaliações, mas a de ajudá-lo a encarar seu sofrimento assim como ele é.
Mais uma nota: essa constatação é também relevante na hora de administrar a necessária medicação antidepressiva. Talvez os raros efeitos paradoxais dos antidepressivos (o paciente que "estava muito bem" e, de repente, tenta o suicídio) tenham a ver não com o fracasso, mas com o sucesso da medicação, que produziu uma melhora substancial antes que o sujeito tivesse o tempo de dizer sua dor.
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