quarta-feira, outubro 11, 2006

Conto de César- Beijo de maresia.














Ando um pouco distante do computador, ótimo momento para colocar o conto do meu amigo querido, que achei outro dia no Google.

Ah! este beijo de maresia... estes personagens são tão familiares...

César tem livros publicados, vou pegar os nomes para vocês comprarem. É escritor premiado, faz roteiros para cinema, trabalha com estas coisas. E mora na fronteira brasileira-boliviana, de onde vê o por do sol no Rio Paraguai. Vocês vão gostar do conto dele, eu gostei muito.



Beijo de maresia.

Augusto César Proença.


Daqui a pouco ele chegará. Talvez entrará pela janela como essa brisa morna que agora suavemente anuncia o romper de um novo ano. O mesmo jeitão enlouquecido, a mesma cabeça de tigre tatuada no braço, o mesmo olhar amortecido por tantos baseados.
Por insistência dela naturalmente dançarão a musiquinha adocicada que a TV faz por bem soar nessa noite de comemoração e alegria: “Adeus Ano Velho, Feliz Ano Novo, que tudo se realize no ano que vai nascer”.
Ainda bem que teve o santo pressentimento que a motivou a dar uma limpadinha no apartamento e a sair para comprar as garrafas de champanhe no supermercado da esquina. Agora elas estão ali, as duas taças, bem juntas em cima da mesinha, cintilantes feito pérolas preciosas, esperando o grande acontecimento e dando um toque de festividade na pequena sala, além da TV ligada do abajur que derrama a sua luz amarelada sobre elas.
Daqui a pouco ele chegará. Entrará com o mesmo sorriso-bom-astral-dos-anos-60. Livre e irreverente. O mesmo grande sonho que o perseguia e o impulsionou a deixá-la num canto da rodoviária: a mochila nas costas, a flor amarela enfiada nos cabelos, uma menina apenas amedrontada, perplexa, sem saber que destino, que rumo, que estrada tomar, enquanto via o ônibus se afastar lentamente soltando aquela fumaça preta e sumindo na primeira curva do caminho.
Olha o relógio com uma certa aflição: faltam só alguns minutinhos para romper o novo ano. Toda perfumada, com o melhor vestido e o mais novo sapato, escuta os primeiros acordes da noite, o pipocar de foguetes, o soar das buzinas e das sirenes que vêm de longe, quase amortecidas por outros barulhos característicos dessas horas que antecedem a chegada de um Ano Novo.
Diante da TV, sentada no sofá, completamente sozinha e já um pouco tomada pelo efeito relaxante do champanhe, enche outra vez a taça e fica olhando a telinha da Globo, que logo-logo dará aquele anual-fantástico-espetáculo da Praia de Copacabana, colorindo o Brasil de alegria.
A vontade agora é de ir até a janela, olhar os prédios iluminados, poder ver nas salas grupos conversando, famílias reunidas, mesas postas para a ceia, mas acaba ficando ali naquele cantinho que é o dela e aperta a taça com força, pensando qual será a atitude dele, a emoção quando chegar como um potro-selvagem-alado depois de tanto tempo desaparecido.
Bebe mais um gole do champanhe....dois... três... quatro... De repente lhe chega a imagem de dois jovens sob o luar de Arembepe. Estão nus, deitados na areia da praia deserta, corpos colados um no outro, salpicados daquela areia grudenta, arranhante, que parecia penetrar na pele úmida e salgada. O lugar tem cheiro de mar, barulho de mar, ânsia de mar. E os dois curtem a brisa que chega lá da vila dos pescadores com o clarão dos fogos de artifício estilhaçando luzes em câmara lenta, anunciando a entrada do ano...do ano...(de que ano mesmo?) ah, agora ela se lembra: do ano de 1968!
Daqui a pouco ele chegará. Entrará como um pássaro que acompanha a corrente da brisa e se sentará no sofá ao lado dela. Então um diálogo passadista, efêmero, sem nenhuma importância poderá se estabelecer entre os dois:
_ Até hoje não entendo por que você fez aquilo... _ ela falará. Com certeza baixará a cabeça, olhando as unhas roídas até no toco e tomará outro gole do champanhe para poder continuar:
_ Apesar de ter me marcado com a sua juventude, com o jeitão libertário, um doidão como te chamavam, pensei que o tempo fosse passar e eu ia te esquecer para sempre.
Engolirá uma saliva seca que lhe interromperá a voz forçando uma pequena pausa.
_ Mas não foi fácil. Senti muita falta tua, muita mesmo, sabe? Um dia cheguei a te odiar, desejei a tua morte. Palavra.
Batendo as asas pela pequena sala um anjo passará e o silêncio constrangedor envolverá o espaço. Por um momento permanecerão sem dizer nada: ele, roendo uma culpa íntima; ela, sentindo um mal-estar como se alguém a tivesse pegado num perverso flagrante.
_ Suponho que nesse tempo todo devem ter acontecido coisas com você..._ ele perguntará.
_ Sim, aconteceram. Eu tive este destino que você tá vendo. Um pequeno apartamento, pequeno carro, pequenos desejos, vida até medíocre. Mas se você quiser saber mesmo, ela, a vida, me encaretou. Me acomodei com pouco pra sobreviver e ser feliz.
_ E você?... o que foi feito de você ? da sua vida ? do seu grande sonho?...– ela perguntará, mordendo a ponta de um dedo, várias vezes, morrendo de curiosidade.
Sentindo um ligeiro tremor, uma ausência de palavras, secura na garganta, talvez receito de contar a pura verdade ele se engasgará antes de responder. Mas poderá dizer que chegava como um vencedor ou simplesmente como um derrotado que procura auxílio, um canto, um arranjo qualquer para se acomodar. Terá coragem de dizer que chegava com cicatrizes doídas?... que a vida fora apenas um desgaste de sonhos?... andanças inúteis à procura de prazeres insatisfeitos, cantos esfumaçados, ventos diluídos pelo nada?...
Daqui a pouco ele chegará. Entrará talvez sem escutar nada nem dizer palavras. O mesmo livro de Marcuse debaixo do braço, a mesma ideologia, o mesmo estilo de vida, aquela impetuosidade de macho que despejava todo o gozo dentro dela enquanto ela sentia o calor das estrelas e suspirava e gemia e gritava ouvindo o barulho do mar trepando nas pedras, a voz de Bob Dylan saindo do gravador portátil. Aparecerá com as brincadeiras de sempre (com o sonho de querer se transformar no famoso artista que desejava ser?). Os cabelos- castanhos-esvoaçantes, o som do violão envolvendo os coqueiros enfileirados, o cheiro da pitanga, do camarão frito, o vôo rasante das gaivotas, algumas vozes, lágrimas, risadas, toda a vibração daquele infinito azul. O bronzeado do sol da Bahia no corpo e o beijo de maresia na boca.

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